11/07/06

A Instrutora

Faz exactamente hoje um ano e três dias (esta data deve ser contada a partir do dia em que isto for lido, seja isso em que data for), com dizia, faz exactamente hoje um ano e três dias que encontrei um tipo vestido de noivo, dentro de um comboio, tendo como destino a cidade de Paris, na França.
O sujeito aparentava ter cerca de 25 anos de idade, a sua estatura física deveria ser média para os padrões actuais, no entanto, não posso precisar com exactidão esse facto uma vez que ele estava sentado, calculei o seu peso corporal como sendo mais ou menos o suposto para um indivíduo com estas características físicas.
Educadamente cumprimentei-o e sentei-me à sua frente.
O comboio não estava lotado, tinha até alguns lugares desocupados, para ser mais preciso, digo que o comboio estava quase vazio, tanto, que o silêncio que imperava na altura em que me sentei, apenas era quebrado pelo barulho da própria locomotiva em andamento… ou seria o velhinho lá atrás a ressonar?
O meu inesperado companheiro de jornada, julgo que para me tranquilizar, disse para eu não estranhar o facto de ele estar vestido daquela forma pouco usual.
Eu sorri, sempre educadamente, e disse-lhe que já não estranhava nada na vida, não, desde o dia em que vi o jogo da Final de um Campeonato do Mundo de futebol onde um jogador, mais especificamente o capitão de uma das equipas, desferiu uma selvática cabeçada no peito de um dos oponentes, esse inqualificável gesto valeu-lhe a óbvia expulsão do jogo, que por sinal era o último da sua carreira professional, no entanto esse mesmo jogador foi, no dia seguinte ao ataque, eleito o Melhor Jogador desse mesmo Campeonato, desde esse dia eu deixei de estranhar o que quer que fosse.

Acho que o tipo vestido de noivo não deve de ter visto esse jogo, pois começou imediatamente a contar-me a razão porque estava ele assim vestido.
Isto foi o que ele me contou:

“Pois é, amigo, aqui vou eu, a caminho do meu casamento, e nem sei ainda se vou encontrar a mulher da minha vida… a mulher da minha vida, nem imagina o tempo que eu perdi até me aperceber disso.
Às vezes parece tão difícil ver o óbvio, não é?
Olhe, faz exactamente hoje um ano e três dias que tudo aconteceu… esse dia ficou gravado na minha memória como uma música está gravada num CD, percebe? É impossível de apagar.
É, há coisas que um homem não esquece facilmente… como aquele dia… bem, na realidade foi uma noite, claro, tinha de ser de noite… aquela parecia ser mais uma noite, igual a tantas outras, dizem que a noite é a melhor companhia dos solitários e desafortunados… o que se passa é que naquela altura eu estava desempregado, desempregado e sem grandes expectativas de encontrar um emprego decente, por isso refugiei-me na noite.
Foi uma época amarga da minha vida, eu vivia num minúsculo quarto, alugado na zona mais degradante desta cidade, as condições eram francamente más, mas aquilo era tudo que eu podia ter na altura.
Aquela noite… bom, aquela noite não fugiu à regra, e às 22 horas, pontualmente, lá estava eu, sentado religiosamente ao balcão de um qualquer bar desta cruel cidade, a tentar afogar as minhas mágoas em incontáveis cocktails, uns atrás dos outros… uns atrás dos outros.
Já deviam ser umas 2 da manhã quando… ou então, eram apenas 23 horas, não sei, eu estava tão bêbado que, no dia seguinte, quando finalmente acordei e recuperei alguns dos meus sentidos, me interroguei se o que tinha acontecido na véspera, tinha de facto acontecido, ou teria, apenas, sido tudo fruto da minha alcoolizada imaginação.”

O tipo fez uma pausa, sacou de um cigarro e acendeu-o, eu, educadamente, disse-lhe que era proibido fumar naquela carruagem, ele, acho que meio a brincar, disse-me que se eu lhe deixasse fumar aquele cigarro até ao fim, me contaria o que lhe aconteceu naquela noite… a viagem até Paris era longa e enfadonha, abri ligeiramente a janela e sentei-me novamente, o indivíduo disse então:

"Amigo, imagine agora este cenário: a mulher perfeita!
Pense, pense por alguns instantes no seu ideal de beleza feminino, tente visualizar o corpo dela, o cabelo, cor dos olhos, a boca, a voz... até a voz, se conseguir... aposto que consegue.
Pois agora eu garanto-lhe que vi essa mesma mulher naquela noite, quero dizer, vi o meu ideal de mulher naquela noite.
Meu Deus... sim, Deus, foi precisamente a partir do momento em que a vi que voltei a acreditar em Deus, e na sua existência... ela... ela era a perfeição em pessoa.
Bom, mas naquela manhã eu estava demasiado confuso, lembrava-me somente de alguns pormenores, como o facto de ter sido ela a vir ter comigo, de termos falado durante algum tempo, do nome dela ser Cristina e... lembrava-me do mais estranho: um inesperado pedido que ela me fez, na verdade acho que não foi bem um pedido, acho que foi mais um desafio, ela desafiou-me a... bom, ela desafiou-me a ter relações sexuais com ela dentro do meu carro... lamentavelmente a obstinação, ou sei lá, tara, da Cristina por meios de transporte, revelou-se uma enorme desilusão para mim, uma vez que naquela altura eu ainda não tinha a carta de condução, quanto mais um carro.
É verdade, meu caro, eu tinha perdido a oportunidade, talvez única, de fazer amor com o meu sonho... de qualquer das formas, nessa manhã, tomei a natural decisão de voltar ao mesmo bar, onde tudo tinha, pensava eu, acontecido.”

O tipo pousou o cigarro e levantou-se para tirar o casaco, eu disse-lhe, ainda que de forma naturalmente educada, que aquela história me parecia difícil de acreditar, o fulano sentou-se e pegou novamente no cigarro, ele disse-me que entendia a minha perplexidade mas depois continuou:

“E lá fui eu… devo-lhe confessar que antes de sair de casa, pus uma dose extra de perfume, sabe, apesar do que algumas pessoas dizem, a verdade é que a maioria das mulheres prefere que o “cheiro a cavalo” se mantenha, apenas e só, nesse animal… mas como lhe dizia, lá fui eu ao bar, carregado de perfume e esperança em encontrar novamente aquele anjo em forma de mulher.
Entrei no bar e sentei-me, sentei-me precisamente no mesmo sítio da noite anterior, pedi uma bebida sem álcool e esperei… fiquei ali, durante horas, sentado naquele mesmo banco, quase como se ele fosse sagrado… infelizmente a Cristina não apareceu nessa noite, nem nessa noite nem nas três seguintes.
São coisas assim, como esta, que fazem com que um homem deixe de acreditar em Deus, como vê, caro amigo, a minha fé é do tipo iô-iô, vai e vem… e passados uns dias ela veio novamente.
Quando a Cristina apareceu lá no bar eu fiquei siderado, ela era ainda mais bonita do que aquilo que eu me lembrava, e o melhor de tudo é que ela se lembrava de mim.
Conversamos durante algum tempo sobre coisas banais, depois não resisti e perguntei se ela se recordava da “proposta” que me tinha feito na primeira noite em que nos vimos.
Ela não disse nada, aqueles breves segundos de silêncio pareceram-me dias, quando recomecei a falar ela interrompeu-me, por detrás de um sorriso ela perguntou se eu já tinha resolvido o meu problema, ela estava a referir-se ao facto de eu não ter carro, entende? Claro que eu ainda não tinha carro, mas não ia ser um pormenor como esse que me iria impedir de ter aquela mulher nos meus braços, eu era capaz de vender a minha alma ao Diabo se fosse preciso, mas nessa noite eu tinha de arranjar um carro, desse por onde desse, por isso disse-lhe que sim, que já tinha resolvido o meu problema, só que… só que a Cristina insistiu em ver a minha carta de condução, fez questão disso, não tive hipótese, sem carta não havia carro e sem carro não havia Cristina.
Ela apenas disse: “Que pena.”, pouco depois a Cristina saiu do bar e eu fiquei ali sozinho, rogando pragas a Deus por Ele não ter enviado um sinal qualquer a avisar que deveria ter tirado a carta quando fiz 18 anos, senti-me abandonado pela fé e pela sorte.
Contudo, quando saí do bar, vi uma coisa que me fez pedir imediatamente perdão a Deus, por ter duvidado da sua benevolência.”

O tipo deu a última passa no cigarro e atirou a ponta pela janela, entretanto, sem que eu tivesse dado conta, o velhinho que estava a ressonar quando eu entrei no comboio, estava agora sentado ao meu lado, parecendo verdadeiramente interessado na história do “noivo”, eu olhei para o homem e cumprimentei-o educadamente, o velho não foi nada educado, não me respondeu sequer, ele apenas pediu ao outro fulano para continuar a historia, este não se fez rogado e disse:

“Uma escola de condução, senhores, eu vi uma escola de condução, ali, mesmo ao lado do bar.
Entendi aquela aparente coincidência como sendo um sinal divino… sei lá, uma espécie de rebuçado dado pelo Senhor, talvez para tentar compensar o facto de Ele se ter esquecido de me avisar, que era suposto eu já ter tirado a carta, não sei… fosse o que fosse, a verdade é que no dia seguinte fui-me matricular naquela escola.
Sabem, o dinheiro que tive obrigatoriamente de pagar pela inscrição fez-me pensar, pensar se tudo aquilo valeria realmente a pena, percebem? Que raio, um homem tem de ser mais do que um animal em cio permanente, um “buscador” incessante de prazer carnal… será que só conseguimos alcançar a felicidade através do sexo? Mesmo que essa felicidade seja, em alguns casos, de breves minutos?
Naquela altura eu pensava que sim, sem qualquer dúvida que sim, por isso ter vendido o anel de família, para arranjar dinheiro suficiente para pagar a carta, não foi assim tão doloroso.
Bom, depois de eu passar a desagradável fase das aulas teóricas, comecei, finalmente, a ter aulas práticas, o meu instrutor era uma pessoa absolutamente normal, tanto, que só na segunda aula é que olhei verdadeiramente para ele, e vi que era uma mulher… não que ela fosse feia, ou se parecesse com um homem, não, nada disso, até pelo contrário, o problema é que eu estava enfeitiçado pela Cristina e só tinha olhos para ela.
À noite, quando ocasionalmente encontrava a Cristina no bar, ela vinha ter comigo e perguntava-me sempre a mesma coisa; se eu já tinha resolvido o meu problema… claro, eu dizia-lhe que estava a tratar do assunto, então ela afastava-se e ia ter com outro homem, e depois outro e outro… eu não percebia aquela sua atitude, mas mais tarde vim a descobrir tudo…”

O mal-educado do velhote interrompeu o tipo, chamando em voz alta prostituta à Cristina, isso fez com que uma mulher, que estava sentada num banco próximo ao nosso se insurgisse contra o velho, dizendo que ele estava a acusar uma pessoa sem provas.
Gerou-se, a meu ver, um burburinho muito desagradável, por isso pedi calma, depois convidei a jovem senhora, que por sinal era bastante bonita, a sentar-se junto de nós para ouvir o restante da história, ela, muito educadamente acedeu ao meu convite e apresentou-se com o nome de Márcia.
Depois de ela se sentar, precisamente à minha frente, e apesar do velho não parar de resmungar, o “noivo” continuou dizendo:

“Os dias foram passando, à medida que as aulas de condução iam avançando, eu começava a sentir uma estranha ansiedade, dava por mim especado na escola de condução horas antes do início das aulas, às vezes eu ia até lá e nem sequer tinha aulas… associei essa ansiedade, ao meu desejo de finalmente… desculpe, menina, mas tenho de ser franco, eu associei essa ansiedade ao meu desejo de finalmente poder possuir a Cristina.
Claro, é claro que tinha de ser por isso, só poderia ser por isso, que outro motivo haveria? Com certeza que não era por causa da Joana, a minha instrutora, uma mulher simples, ainda por cima divorciada e com um filho pequeno… o Pedrinho, não, não podia ser por causa dela.
Sabem, durante as aulas eu nunca contei à Joana, o verdadeiro motivo de eu querer tirar a carta de condução, na verdade eu nem me lembrava disso quando estava com ela… nós falávamos de outras coisas, falávamos dos lugares onde gostávamos de ir, dos filmes que vimos, dos livros que lemos, das músicas que ouvimos, dos sonhos… dos sonhos desfeitos, da esperança no futuro, falávamos dos nossos medos e alegrias… enfim, se os meus olhos não mentirem, acho que vocês já devem ter notado que eu me apaixonei por ela.”

Desta vez, quem interrompeu o tipo, foi a Márcia, ela achou aquela parte da história muito querida, e fez questão de o dizer.
Estranhamente, para mim, o velhote foi educado e concordou com a Márcia.
Devo ser sincero, eu não ouvi aquela parte da história com muita atenção, os meus pensamentos estavam demasiado ocupados com a Márcia… pensamentos educados, entenda-se.
O “noivo” retirou de um bolso do casaco a carteira e mostrou-nos uma fotografia da Joana, a tal instrutora, depois disse:

“Estava a chover, estava a chover, quando o dia da última aula chegou… enchi-me de uma coragem que não sabia sequer ter, e contei tudo à Joana, tudo.
Disse-lhe o motivo de eu querer tirar a carta e falei-lhe na Cristina… sabem o que ela me disse? Nem vão acreditar.
A Joana conhecia a Cristina.
Segundo o que a Joana me contou, a Cristina era apenas uma vítima, uma vítima do próprio marido, o dono da escola de condução. O bandido montou um esquema para ter mais alunos, obrigando a Cristina a seduzir homens que não tinham carta de condução… como foi o meu caso.
Entretanto, algum tempo depois, eu soube que a Cristina não aguentou mais aquela situação e pediu o divórcio, ela foi inclusivamente, denunciar o marido à polícia… nunca mais soube nada dela.
Bom, mas voltando à minha última aula de condução, depois da Joana me contar tudo aquilo, eu fiquei… sem palavras, literalmente.
Mas, também, para que são precisas palavras quando estamos apaixonados, e os nossos olhos falam por nós? Foi isso que aconteceu… beijámo-nos.”

Tive de ser eu a interromper o tipo, para oferecer um lenço de papel à Márcia, que estava visivelmente emocionada, até o velhote estava, mas a esse eu não ofereci nada.
Por fim, o “noivo” contou que estava a caminho de Paris, mais concretamente, a caminho da Euro Disney, local para onde a Joana tinha ido passear com o filho Pedro, para lhes fazer uma surpresa e pedir a mão de Joana em casamento.

Agora que recordo esta minha viagem a Paris, não posso deixar de pensar em como a vida é irónica e cheia de coincidências… é que agora chegou a minha vez de ir vestido de noivo, e aqui vou eu, a caminho do meu próprio casamento, cheio de vaidade e orgulho, por me ir casar com a mulher mais deslumbrante deste mundo, a Cristina.

FIM

29/05/06

Novelog "Desejo Maldito"

Local: Motel "Biutifule Escai"
Horas: 16.00
Clima: quente e seco
Temperatura: 34 graus centigrados
Humidade: estupidamente alta
Altitude: 210 metros acima do nível do mar (+/-)
País: Brasil
Cidade: Rio de Janeiro
Música de fundo: nível demasiado baixo para ser identificada
Decoração do quarto: normal, para um motel de 5ª categoria (uma cama)
Nome dele: Isaías Jaqueson “Tripé” dos Santos
Idade dele: 40
Profissão dele: Filhinho de papai (papai é multi-milionário)
Nome dela: Gracineide Cabocla
Idade dela: Muito mais nova que ele
Profissão dela: Empregada doméstica (dele)

ACÇÃO!
CAPITULO I

Gracineide está sentada na cama, Isaías se aproxima dela.

“Meu bem, finalmente estamos sozinhos, sonhei muitas noites com este momento.” – foi dizendo Isaías, pegando as mãos de Gracineide.
“Isaías, eu…” – Gracineide se levanta, virando as costas pró Isaías.
“Graci. Que se está passando? Você tem alguma coisa pra falar pra mim?” – Isaías pega nos braços dela. “Pode falar, gatinha.”
Gracineide se vira para ele, ela baixa o rosto e se senta novamente na cama.
Isaías se agacha perante ela e coloca suas mãos nos joelhos de Gracineide.
“Não, por favor… pare…” – diz Gracineide se levantando bruscamente e avançando até à porta do quarto. Isaías a impede de sair.
“Graci… eu não estou entendendo. Você sabe o quanto eu sou vidrado em você… sei bem que você é apenas uma empregada doméstica, mas nosso amor é bem mais forte que um preconceito bobo desses. Relaxe… olhe bem fundo nos meus olhos… são os olhos de um cara apaixonado que você está enxergando.”
“Isaías…”
Ele coloca suas mãos no rosto dela.
“Graci, você está assim porque deve de ter ouvido um montão de bobagem a meu respeito, né? Pode abrir o jogo… sei bem o quanto as pessoas são invejosas.”
“Não… não é isso.” – diz Gracineide, desviando o olhar.
“Se você ainda tem dúvidas em relação ao meu amor pode ficar descansada, eu sou super-amarrado em você.”
“Você não está entendendo… nós não podemos ficar juntos.”

CAPITULO II


Gracineide tenta abrir a porta, Isaías a impede.
“Não, Graci. Você só vai sair daqui, depois que me der uma explicação.”
“Tá legal…” – Gracineide solta um suspiro. “Você ia acabar ficando sabendo mesmo.”
“Fala logo, não esconde mais o jogo.”
Gracineide abre sua bolsa e pega um papel.
“Isaías, nós não podemos ficar juntos porque, nós, os dois… somos irmãos.”
“Como é que é?! … qué que você me está dizendo?”
“Tente se manter calmo, também levei um choque assim que soube…”
“Você só pode estar brincando… não… isso não é possível.”
Isaías coloca suas mãos na cabeça, andando de um lado pró outro.
“Não tem um jeito fácil de dizer isto, mas seu pai, o Doutor Criomar… é meu pai também.”
Isaías se coloca em frente de Gracineide.
“Como é que você soube, quem lhe contou, quem mais sabe disso?” – perguntou sem parar Isaías.
“Minha mãe… foi minha mãe que me contou tudo… a semana passada, pouco antes de morrer…” “A governanta Jacinta?!"

“Sim, mamãe teve um relacionamento com seu pai, há muitos anos atrás… e eu sou o resultado desse relacionamento mantido em segredo até agora…”
“Mantido em segredo?! Quer dizer que minha mãe não soube de nada?”
“Não, Isaías… sua mãe morreu sem saber de nada… foi melhor assim pra todo o mundo.”
Isaías se senta na cama, parecendo mais calmo.
“Quem mais sabe disso, e como você pode ter a certeza que Jacinta falou a verdade pra você?”
Gracineide se aproxima dele.
“Ninguém mais sabe disso… e eu tenho a certeza porque… olha aí…” – Gracineide entrega um papel pró Isaías. “Tá aí a prova, esse é o resultado de paternidade, fui buscá-lo hoje de manhã cedo.” – Isaías lê o papel. “Foi fácil de arranjar um cabelo de seu pai… do nosso pai, pró teste.”

CAPITULO III

Depois de ler o teste de paternidade, Isaías só consegue pensar numa coisa: a herança que seu pai, o Dr. Criomar, lhe vai deixar em testamento, agora ela vai ter de ser dividida com outra pessoa, e logo com uma empregadinha bastarda.
“Você está se sentindo bem?” – pergunta Gracineide, vendo que Isaías não fala nada.
Isaías se levanta, caminhando até à janela do quarto, com o teste na mão.
“Você pensa que vai conseguir o que quer, né?”
“Como assim, Isaías? De que é que você está falando?”
“Ora, Graci, não seja tão cínica, você só está a fim de pegar a grana do coroa.”
“Mas…”
“Pois seu golpe deu errado, olha aqui o que eu vou fazer com essa porra.” – Isaías rasga furiosamente o teste de paternidade, jogando-o pela janela.
“Você está louco, eu não quero nada… só quero que o Dr. Criomar reconheça que eu sou filha dele.” – Gracineide pega a bolsa e tenta abrir a porta, Isaías a impede.
“Onde é que tu pensa que vai?! Você não vai a lugar nenhum… ainda temos um negócio pra resolver.” – diz Isaías, agarrando Gracineide.
“Me larga, você está louco… me larga, você está me magoando.”
Naquele instante entram no quarto dois caras, vestidos com o uniforme da selecção de futebol do Brasil, um cara tem colocada a máscara do Ronaldinho Gaúcho e o outro a máscara do Roberto Carlos.

CAPITULO IV

Quando os dois caras entram no quarto, eles derrubam Gracineide com a porta, ela cai no chão, ficando inconsciente.
Os dois caras se apercebem da situação.
“Pô, cara… foi mau… falha nossa. Aí, pega tua mina e a joga em cima da cama, morou?” – diz Ronaldinho pró surpreso Isaías.
“Mas que porra é essa?! Caiam fora daqui, seus moleques.” – diz Isaías, irritado.
“Tu não ouviu o meu camarada, otário?!” – diz Roberto Carlos, sacando de uma arma, escondida no uniforme, e a apontando pró Isaías. “Pega tua mina e a joga em cima da cama… tá ligado?”
Isaías se assusta e não tem outra alternativa que não seja obedecer.
Ronaldinho fica espiando o corredor pela porta entreaberta.
“É isso aí, titio… agora te encosta nessa parede… se tu é um cara inteligente não vai tentar nada, sacou?” – diz Roberto Carlos, apontando a arma pró Isaías.
“Aí, titio… a gente não se conhece não? Tua cara não me é estranha…” – continua dizendo Roberto Carlos.
“Aí, fica ligado…” – diz Ronaldinho pró Roberto Carlos. “Ele tá vindo lá.”
Segundos depois entra um terceiro cara vestido com o uniforme da selecção de futebol do Brasil, este tem a máscara do Adriano, assim que ele entra, Ronaldinho fecha a porta.
Os três caras se cumprimentam alegremente.
“Aí, tudo certo?” – diz Ronaldinho pró Adriano.
“Tudo jóia… saca só.” – diz Adriano levantando a camisa, ele tem um montão de notas presas nos shorts.
“Show de bola! Olha eu aqui.” – diz Ronaldinho, levantando a camisa, ele também tá carregado de notas nos shorts.
“Aí, irmãozinho… qué que tu tem pra mostrar pra gente?” – pergunta Adriano pró Roberto Carlos.
“Anda logo, cara.” – diz Ronaldinho.
“Pô, foi mau… só peguei isso daqui.” – diz Roberto Carlos levantando a camisa, ele só tem meia dúzia de notas nos shorts.
Adriano e Ronaldinho se riem de Roberto Carlos.
“Pode ficar tranquilo, brother… a galera vai rachar tudo… viu, mané? – diz Adriano, tirando onda.

CAPITULO V

Adriano, finalmente, se apercebe que naquele quarto de motel, para além de seus camaradas; Ronaldinho Gaúcho e Roberto Carlos, tem mais alguém lá.
Ele fixa o olhar no Isaías, que continua com os braços no ar.

“Dr. Isaías?! Qué que o senhor está fazendo aqui?” – pergunta Adriano pró Isaías.
“Ué… tu conhece o cara?” – pergunta Roberto Carlos pró Adriano.
Adriano olha para a cama, ele enxerga o corpo de uma mulher lá deitado.
“Ah… saquei o lance. Aí, Doutor, desculpe o mau jeito. A galera aqui não vai demorar muito, não… é só o tempo das coisas darem uma esfriada lá fora… sabe como é que é. Logo, logo, o senhor vai poder terminar o negócio que veio fazer aqui, viu?”
“Vem cá… eu te conheço?” – pergunta Isaías pró Adriano.
“Pô… claro que conhece, sou eu…”
“Aí, Einstein, tu tá com a máscara colocada.” – sopra Roberto Carlos pró Adriano.
“Einstein é a vovôzinha, sacou? Fica quieto.” – diz Adriano, retirando lentamente a máscara. Ele se vira pró Isaías. “Aí, Doutor… Tá sacando agora a figura do cara?”
Assim que Isaías vê o verdadeiro rosto de Adriano, toma um susto e quase cai.

CAPITULO VI

“Xiiii, olha aí o cara, ficou branco que nem a sua bunda.” – diz Roberto Carlos pró Ronaldinho.
“Que negócio é esse? Tu nunca viu a minha bunda pra saber.” – responde Ronaldinho.
“Pô, foi mau… eu queria dizer a bunda da sua garota.”
“Repete… repete, se tu é home.” – diz Ronaldinho irado, apontando uma pistola pró camarada, Roberto Carlos se ri.
“Aí, molecada… cês vão parar com essa porra? O Doutor aqui tá ficando assustado pra valer.” – diz Adriano.
“É esse mané aí.” – diz Ronaldinho.
“Mané é tu, ó otário.” – responde Roberto Carlos.
“Num ligue não, Doutor, os moleque só tem é garganta… vem cá, o senhor já sacou quem eu sou? O Doutor já me viu, se lembra? Na casa de seu papai, à entrada, falando com uma sua empregada, a…”
“Sim, sim… eu me lembro, eu me lembro.” – responde Isaías se afastando o mais que consegue da cama.
“Aí, o Doutor pode baixar os braços, ninguém aqui lhe vai fazer mal. O senhor tá assim, a meios que surpreendido, porque num esperava me ver aqui, né? Fazendo um negócio sujo como esse daqui.” – diz Adriano mostrando as notas pró Isaías.
“Que negócio sujo, que nada, pô! Nois num acabou de pegar a nota toda de uma lavandaria? Então, negócio mais limpo que esse num tem.” – diz Roberto Carlos, sorrindo.
“Falou, nois limpou a lavandaria.” – diz Ronaldinho, às gargalhadas.
“É Doutor, nem todo o mundo tem a sorte de nascer milionário, que nem o senhor.” – diz Adriano.
“Eu compreendo… mas será que dá pra me liberar?” – pergunta a medo Isaías.
“Sabe, eu só fiz este negócio porque tava sem dinheiro nenhum… sabe como é que é… eu queria comprar um anel de noivado e este foi o único jeito de arranjar a grana.” – diz Adriano.
Entretanto Gracineide se começa a mexer na cama, aos poucos ela recupera seus sentidos.

CAPITULO VII

“Nossa… que aconteceu comigo?” – pergunta Gracineide meio grogue.
Isaías tenta sair do quarto, Ronaldinho o impede.
“Qué que tá acontecendo aqui?” – diz Adriano. “Tou reconhecendo a voz dessa garota.”
“Tou ferrado.” – sopra Isaías.
Gracineide olha pró Adriano. “Você?!” – pergunta ela, confusa.
“Graci? O que você está fazendo aqui?” – pergunta Adriano.
“Txi… aí, o clube tem mais um membro.” – diz Roberto Carlos pró Ronaldinho.
“Cala a boca, pô!” – responde Ronaldinho.
Gracineide se senta na cama, tentando pôr suas ideias em ordem.
“E aí, Graci… tu vai me explicar o que tu tá fazendo num quarto de motel com este cafageste?” – pergunta nervosamente Adriano.
“Pelo amor de Deus, não é nada do que você está pensando.” – apela Isaías.
“Tu tá morto, cara… e morto não fala.” – ameaça Adriano.
“Amor…” – diz Gracineide tentando acalmar Adriano.
“Amor? Tu ainda tem a coragem de me chamar de amor? Nossa… como eu fui otário… me meti numa fria tentando sacar uma grana pra te comprar um anel… um anel de noivado, porra. E tu me faz uma dessas? Não, eu não sou seu amor…” – diz Adriano desesperado.
“Pelo amor de Deus… lhe fale do teste…” – diz Isaías pra Gracineide.
“Já falei que morto num fala, pô! Se tu abre a boca de novo vai tomar chumbo.” – diz furiosamente Adriano, ele dá uma pausa pra pensar e se tentar acalmar. “Que teste é esse, Gracineide?” – pergunta ele, Gracineide limpa suas lágrimas do rosto.
“Você tem de acreditar em mim… o Doutor Isaías e eu não fizemos nada de errado…” – Gracineide se levanta, avançando até ao Adriano. “Eu nunca iria trair você… nunca. E… e…”
“E, o quê? Fala logo.” – diz Roberto Carlos.
Adriano se vira por momentos pró Roberto Carlos, com cara de quem comeu e não gostou.
“Foi mau… eheheh.” – diz Roberto Carlos.
“Amor… eu e o Doutor Isaías nunca que poderíamos ter um relacionamento porque na verdade nós os dois… somos irmãos.” – diz Gracineide tentando abraçar Adriano.

CAPITULO VIII

“Como é que é?!” - diz Adriano, afastando Gracineide.
“Irmãos… irmãos de verdade… eu e o Doutor somos irmãos.” – fala Gracineide, olhando nos olhos do Adriano.
“Cara, você tem de acreditar no que ela está falando… “ – sai implorando Isaías.
“Meu, agora eu já ouvi todas as desculpas pró encornamento… fala sério.” – diz Roberto Carlos pró Ronaldinho.
“Acredite em mim, amor… eu só vim aqui pra contar a verdade pra ele. Também levei um choque quando soube… foi mamãe que me contou… antes de morrer.” – diz Gracineide, com lágrimas nos olhos.
“Você deve de pensar que eu sou bobo pra acreditar numa história, pra lá de inacreditável, como essa daí.” – diz Adriano.
“Lhe fale do teste, Gracineide… lhe fale do teste.” – diz Isaías.
“Mas que porra de teste é esse?!” – pergunta Adriano.
“O teste… o teste de paternidade, que confirma que o pai do Doutor Isaías, é também meu pai.” – diz Gracineide.
“E cadê esse teste?” – pergunta Roberto Carlos.
“Sim, onde está esse tal teste?” – pergunta também Adriano.
Gracineide fica em silêncio, olhando pró Isaías.
“Eu… eu o joguei pela janela.” – confessa Isaías. “ Mas você tem de acreditar…”
“Ora, faça-me um favor… tu vai é morrer.” – diz furiosamente Adriano, apontando uma arma pró Isaías.
“Não… lhe suplico… por favor.” – implora Isaías, se ajoelhando no chão.
“Aí, o negócio não era apagar ninguém.” – diz Ronaldinho pró Adriano.
“É… tu não tá pegando muito pesado, não?” – diz Roberto Carlos.
“Por favor… me poupe… ” – implora novamente Isaías.
Adriano olha pra todo o mundo.
“Olha aqui, se tu não quer morrer, vai ter de dar algo em troca.” – diz ele.
“Eu lhe dou tudo que quiser… “ – diz Isaías.

CAPITULO IX

“O seu cofre.” – fala Adriano.
“Cofre… que cofre?! Não sei do que…” – diz Isaías.
“Gracineide me falou dele.” – diz Adriano, olhando prá Gracineide.
“Por favor, amor…” – diz Gracineide, tentando chegar perto de Adriano.
“Pare! Se sente na cama… faça o que estou mandando.” – ordena Adriano, Gracineide obedece.
Adriano se aproxima um pouco mais de Isaías.
“Por favor…” – implora Isaías.
“É Doutor, o senhor é muito esperto, né? Ninguém sabe do seu cofre… do seu secreto cofre… “ – diz Adriano, brincando com a arma que tem nas mãos.
“Eu não sei do que você está falando, eu juro que não sei…” – fala Isaías desesperado.
“Tá legal, o senhor não se lembra… tá com a memória fraca, eu entendo, mas deixa que eu te ajudo a lembrar; o Doutor tem um cofre secreto, sim… um cofre que tu pensa que mais ninguém sabe da sua existência… sim, pode olhar bem prá Graci, ela sabe onde ele fica… infelizmente ela nunca contou pra mim o lugar exacto desse cofre… pra falar a verdade, Doutor, acho que ela pensa que eu sou um bandido… dá pra acreditar?” – discursa pleno de confiança Adriano.
“Seu cafageste…” – grita Gracineide, tentando agredir Adriano, Roberto Carlos a segura.
“Como é?! Sua memória tá melhorando?” – pergunta Adriano, Isaías baixa sua cabeça. “Outra ajuda, Doutor: seu cofre está cheio de jóias… vejo que já se lembra. Olha aqui, espero que sua memória tenha melhorado porque eu quero o código que abre a porra desse cofre… e o quero agora!” – exige Adriano.
Gracineide se joga em cima da cama chorando.
“Mesmo que eu diga o código vocês vão-me matar de qualquer jeito.” – desabafa Isaías.
“Doutor, eu não tenho nada a perder, tu já me viu o rosto mesmo, agora o caso é o seguinte: se tu não dá o código eu te apago, se tu dá o código tem possibilidades de viver… qual que tu escolhe?” – pergunta Adriano, apontando a arma pró Isaías.
Ronaldinho e Roberto Carlos se aproximam de Adriano, ficando cochichando.
“Tu tem certeza do que está fazendo?” – pergunta Ronaldinho pró Adriano.
“Fiquem frios, o cara vai falar, tenho a certeza… se imaginem a passear em qualquer parte do Mundo, com gatinhas pró todo o lado, vai ser moleza. Aí, assim que ele der o código vocês o levam pró barracão… eu mais tarde apareço lá… com as jóias” – diz Adriano entusiasmado.
“E a garota?” – pergunta Ronaldinho.
“Deixa isso comigo.” – fala Adriano, se virando pró Isaías. “Aí, Doutor, seu tempo terminou… pode falar.” – ordena Adriano.
Isaías suspira.
“Tu não ouviu o meu camarada? Pode falar.” – diz Roberto Carlos.
“…” – Isaías diz qualquer coisa imperceptível.
“Fala direito, pô!” – ordena Adriano.
“2-6-7-9” – diz Isaías irritado.
“Decorou?” – pergunta Ronaldinho pró Adriano.
“Tranquilo, tá registado. Aí, checa a rua, e você dá uma espiada no corredor.” – diz Adriano prós dois camaradas, ele se abaixa pra falar com o Isaías. “Se prepara, tu vai dar um passeio.”
“Tá tudo limpo, podemos ir.” – diz Roberto Carlos. “Doutor, se tu tenta dar uma de herói vai-se dar mal, falou? Fica de boca calada que é melhor pra todo o Mundo.” – avisa ele, agarrando o braço de Isaías.
Ronaldinho e Roberto Carlos se aproximam da porta do quarto, se preparando pra sair, Isaías tá com eles.
“Aí, tu te entende com a madame?” – pergunta Ronaldinho pró Adriano.
“Pode deixar, a cachorra vai dizer onde fica o cofre, fica tranquilo…” – diz Adriano.
“Falou, vamos nessa.” – diz Ronaldinho.
Os três saem do quarto.
“Agora nós os dois.” – diz Adriano prá Gracineide.
Ela se levanta, limpa as lágrimas do rosto, se aproxima de Adriano e lhe dá um valente tapa na cara.

CAPITULO X

“Hei… porque foi isso?” – pergunta Adriano, colocando sua mão na face.
“Cachorra é a sua mamãe.” – diz Gracineide irritada.
“Ué, não era pra ser convincente?”
“Mas precisava exagerar?! E olha aqui, porque você trouxe aqueles caras?”
“Achei que ia ficar mais real assim… não fique magoada comigo… vem cá.” – diz Adriano agarrando Gracineide e lhe dando um beijo na boca.
“Nosso plano correu direitinho, né?” – pergunta Adriano.
“Sim… só não esperava levar com uma porta na cara.” – diz Gracineide sorrindo.
“Agora vamos…”
“Sabe, amor… continuo achando que você não deveria de ter trazido aqueles caras.”
“Não estresse, meu bem… os caras são pra lá de estúpidos… olha aqui, vamos lá na casa do Doutor, abrimos o cofre e damos o fora desta cidade pra sempre, não tem como eles nos achar.”
“Tem certeza?”
“Claro… sabia que você fica ainda mais linda quando está preocupada?” – diz Adriano passando os dedos nos cabelos de Gracineide.
“Eu amo você.”
Adriano e Gracineide se beijam intensamente.

FIM

CAPITULO EXTRA

Nesse instante, subitamente, a porta do quarto é violentamente derrubada, alguns policiais armados entram correndo, eles apontam suas armas pró surpreendido casal.
“Mãos para cima.” – grita um dos policiais.
“Mas…” – Adriano tenta dizer qualquer coisa.
“Seus pilantras.” – diz o mesmo policial, se aproximado do casal, com ar de satisfação. “Vocês pensavam que ser fácil assim?! Fiquem sabendo que a nossa força policial é conhecida no mundo inteiro pela sua competência… não fique tão surpreendido, cara… nós andávamos tentando pegar os delinquentes que roubaram a lavandaria aqui próxima, aí o agente Peixoto…”
“Olha eu aqui.” – diz o agente Peixoto acenando.
“Aí o agente Peixoto viu um papel suspeito sendo jogado fora, precisamente desta janela aqui.” – o agente se aproxima da janela, espreitando para a rua. “Quando ele pegou o papel, conseguiu ler o nome do Doutor Isaías, figura muito conceituada nesta cidade… Peixoto me comunicou o ocorrido e se escondeu num local estrategicamente escolhido…”
“É… na verdade, eu tinha de ir no banheiro mesmo.” – diz o agente Peixoto.
“Foi através do banheiro público, aquele bem ali em baixo, que o agente Peixoto viu os três suspeitos entrando neste motel… depois foi moleza, Peixoto deixou tudo nas minhas mãos… o caso, quero dizer.”
“É… foi aí que o agente Douglas.” – diz o agente Peixoto.
“Sou eu, claro.” – diz o agente policial que tinha estado a falar.
“Foi aí que Douglas decidiu mandar a gente entrar neste motel, quando íamos passando por este quarto ouvimos vozes suspeitas… foi só pegar um gravador, ficar bem coladinho na porta e gravar tudo.” – diz o agente Peixoto, mostrando um pequeno gravador.
O agente Douglas se aproxima do casal e diz o seguinte: “Pode crer, Peixoto… o mal dos brasileiros é que pensam que a vida é de brincadeirinha, que nem uma novela… só que essa daqui já terminou… e terminou mal.”

FIM

26/04/06

Grande Filme

Júlia Silva, 41 anos de idade, divorciada, mãe de uma filha, engenheira (não a filha, a Júlia).

Júlia foi ao cinema, para evitar uma coisa que ela detesta; as grandes confusões, ela resolveu ir à noite, numa quarta-feira, depois do jantar.
Assim que entrou na cinema, Júlia deu um enorme suspiro de alívio porque a sala estava praticamente vazia, as únicas pessoas que lá estavam dentro eram; um casal de jovens, sentados na primeira fila, e mais outras duas pessoas, uma sentada no extremo direito da sala e a outra no lado oposto.
Júlia subiu os degraus até à última fila, aquela que está mais distante do ecrã, e sentou-se na cadeira mais centrada em relação à sala possível, alguns instantes depois as luzes apagaram-se quase por completo, o filme estava prestes a começar.
Entretanto, um homem entrou, à pressa, na sala.
Como sempre, Júlia começou a fazer os exercícios mentais que sempre faz quando vê um filme, basicamente ela tenta convencer o cérebro que tudo aquilo que vai ver é real, à custa desta técnica ela já teve alguns problemas, nomeadamente uma vez atirou com o pacote de pipocas contra o ecrã quando o “mau da fita” deu um estalo ao “herói”.
Estava Júlia na fase final de concentração, quando o último tipo que tinha entrado na sala foi ter com ela.

- Desculpe, esse lugar é meu. – disse o sujeito.
- Boa noite. – respondeu a Júlia.
- A senhora não ouviu o que eu disse?
- Desculpe lá, estava a concentrar-me para ver o filme, precisa de ajuda?
- Sim, preciso que a senhora saia desse lugar.
- Como?!
- Esse lugar… é meu.
- É seu?!
- Sim, é meu. Está aqui no meu bilhete… fila A, lugar 13… vê?
- Ah, já percebi!
- Óptimo, agora importa-se? O filme já começou.
- Pode parar, eu já descobri que isto é para os apanhados… onde estão as câmaras?
- Quais câmaras?! A senhora está a gozar comigo?
- Calma aí… o senhor está a falar a sério?
- Claro que estou a falar a sério, a senhora vai demorar muito tempo a sair do meu lugar?
- Isto só a mim… vim eu ao cinema a esta hora, para não ter chatices, e aparece-me este…
- Como é?!
- Caro senhor, repare numa coisa muito simples: esta sala deve de ter umas 300 cadeiras, estão cá dentro 5 pessoas, sobram 295, porque raio é que não escolhe uma delas?
- Acha que me vou sentar no lugar de outra pessoa?
- Mas as cadeiras estão vazias, senhor, e de certeza que não vai entrar mais ninguém agora.
- Como pode ter tanta certeza disso? Além de tudo, eu sou uma pessoa que respeita os outros.
- Eu só gostava de saber qual é o mal de se sentar noutra cadeira, palavra de honra.
- Eu não vou insistir mais, se a senhora não sai, eu vou ter de ir chamar um funcionário.
- Isso, vá… vá e não volte.
- Grande cabra. – sussurrou o tipo enquanto saía da sala.
- Vocês acreditam neste palhaço? Com uma sala quase vazia, o tipo insiste em querer sentar-se no lugar marcado no bilhete. – disse a Júlia para as pessoas que estavam na sala.
- Ouça lá. – disse o homem do casal, que estava sentado na primeira fila. – Qual é o seu problema? Nós também estamos sentados no lugar marcado, porque é que acha que estamos sentados nestes lugares de merda? Daqui para conseguir ler as legendas tenho de olhar de um lado para o outro, como se estivesse numa partida de ténis.
- Mas ainda pior estou eu, estar encostado a esta parede não é nada agradável, acreditem. – queixou-se um dos tipos que estava sentado num dos cantos da sala.
- Idem, idem, eu aqui, deste ângulo, apenas consigo ver metade do ecrã. – disse o outro tipo, do outro lado da sala.
- Valha-me Deus! Mas se a sala estava vazia, porque é que vocês não escolheram um lugar melhor? – perguntou a Júlia.
- Porque este é o nosso lugar! – responderam todos em uníssono.
- Homens… - suspirou a Júlia, com um ar enfadonho. – A menina, ai em baixo, não tem nada para dizer? – perguntou ela, à mulher do casal, que estava sentado na primeira fila.

A mulher manteve-se em silêncio, nem sequer se virou para a Júlia.

- Fantástico, a união feminina nunca falha. Parece que estou sozinha nesta luta. – disse a Júlia.

Entretanto chegou o tipo que tinha saído da sala, um funcionário veio com ele, os dois foram ter com a Júlia.

- É esta, é esta a senhora que lhe falei. – disse o tipo, ao apontar para a Júlia.

O funcionário olhou para a Júlia, a Júlia olhou para o funcionário.

- Tu?! – questionaram-se os dois, ao mesmo tempo.
- Estou a ver que continuas a mesma casmurra, não é? – disse o funcionário, virado para a Júlia.
- E eu estou a ver que continuas o mesmo fracassado, não é? – respondeu-lhe ela.
- Só faltava esta… vocês conhecem-se? – perguntou o tipo que tinha ido chamar o funcionário.
- Infelizmente. – responderam ao mesmo tempo o funcionário e a Júlia.
- Tive o desprazer de estar casado, em tempos, com esta senhora. – disse o funcionário.
- Coitado… pela amostra, não deve de ter sido nada fácil viver com esta senhora…
- Alto lá. – interrompeu Júlia, olhando com ar de poucos amigos para o sujeito. – Como se atreve a fazer esse tipo de comentários, por acaso você sabe o que se passou entre nós os dois? Se não sabe eu conto-lhe. Este palhaço abandonou-me, a mim e à nossa filha, deixou-nos assim, sem mais nem menos. Dizia ele que ia em busca da felicidade perdida.
- Júlia…
- Ele passava os dias sentado no sofá, a olhar para a televisão. Só dizia que era um artista, um actor nato… vendo bem as coisas agora, Francisco, tenho de te dar algum crédito, sempre conseguiste entrar para o mundo da sétima arte, só que em vez de ser como actor, foi como funcionário de uma sala de cinema, nada mau… parabéns! – disse a Júlia.
- Olha… ao menos… ao menos eu esforcei-me, tentei encontrar um trabalho de que realmente gostasse, não queria ser como tu e passar a vida a fazer uma coisa que não gosto… a propósito, ainda continuas a trabalhar naquele emprego que tanto detestas? – perguntou o Francisco.
- Sim, meu grande anormal, e foi graças a esse emprego que viveste às minhas custas durante aqueles anos todos em não fizeste absolutamente nada.
- Continuas na mesma… olha, no meio de tudo isto só tenho pena que a minha filha tenha ficado contigo, com a tua influência nem sei o que vai ser da minha querida filha.
- Grande lata, tu nunca te preocupaste com ela… e já agora, fica descansado, é graças à minha influência que a Joana está agora a estudar na casa da Maria.

O homem que foi chamar o funcionário (Francisco), agarra-lhe pelo braço e os dois afastam-se um pouco da Júlia, de modo a que ela não ouvisse.

- Ouça lá, vocês vão ficar a noite toda nisto? Eu ainda queria ver o resto do filme.
- Olhe… como é que você se chama?
- Artur.
- Olhe, Artur, você já viu como ela é, e…
- Eu não tenho nada com isso, eu só quero sentar-me no meu lugar.
- Artur… porque é que não se senta noutro lugar, só por agora… eu depois até lhe arranjo outro bilhete.
- Nem pensar, a razão está comigo. Ela não se vai ficar a rir, não senhor. Veja se faz alguma coisa.
- O que quer que eu faça?!
- Qualquer coisa, olhe, peça-lhe o bilhete, assim ela vai ver que está no lugar errado.
- Bom… vamos lá, mas aviso-lhe que não vai ser fácil.

Os dois aproximam-se da Júlia.

- Júlia tens aí o teu bilhete? Preciso de o ver. – disse o Francisco.
- O meu bilhete, para quê?
- Porque preciso de o ver, é o meu trabalho.
- Ai sim? Então vais ter de pedir o bilhete às outras pessoas que aqui estão.
- Ok… eu vou depois.
- Não. Primeiro vai pedir o bilhete dos outros, depois eu mostro o meu.
- A senhora realmente é uma… - disse o Artur furioso.
- Sou uma quê? Atreva-se.
- Calma… calma. Eu vou pedir os bilhetes às outras pessoas.

O Francisco foi primeiro pedir os bilhetes aos dois tipos que estavam sentados nos cantos da sala, depois aproximou-se do casal que estava sentado na primeira fila, viu o bilhete do homem, e quando olhou para a mulher do casal…

- Tu?! – disse o Francisco surpreendido.
- Eu posso explicar. – disse ela.
- Tu conheces este tipo, Joana? – perguntou o homem do casal.
- Este tipo, é o pai dela. E você quem é? – disse o Francisco, visivelmente irritado.
- Ah… Olá, como está? – respondeu simpaticamente o homem, esticando o braço para cumprimentar o Francisco. - O meu nome é João, eu…
- Ouça lá, você sabe que a minha filha só tem 15 anos? – perguntou o Francisco, ignorando o gesto do João, que aparentava ter uns 27 anos.
- 18, pai. Tenho 18. – disse a Joana.
- Mas tu disseste-me que tinhas 22. – disse admirado o João.
- 20, João. Eu disse que tinha 20. – respondeu a Joana calmamente.

“Eu considero-me uma pessoa, além disso, considero-me uma pessoa com já alguma experiência em escrever histórias.
Recordo-me, para meu próprio beneficio, de saídas e soluções verdadeiramente inesperadas, mesmo quando as coisas pareciam ter ido dar a um beco sem saída, eu, após alguns momentos de “transe”, encontrava sempre uma maneira de dar a volta às coisas… aquela imagem do tipo a assaltar um Banco com uma banana (Dinheiro & Bananas) foi, e é, um bom exemplo disso mesmo.
Pois bem, por muito que me custe a admitir, e custa-me realmente muito admitir, a verdade, a crua e fria verdade, é que fui vencido, fui atirado ao tapete sem dó nem piedade.
O acima referido pode parecer mau, mas a parte pior ainda está para vir, sim, porque um mal nunca vem só.
Eu até considerava normal ter sido vencido por um daqueles gigantes da luta-livre, ou até, derrotado por um grupo de velhinhas furiosas, mas ser vencido e derrotado por uma miúda? Uma miúda de 18 anos? Uma miúda de 18 anos, que mente? Uma miúda de 18 anos, que mente, e que permanece calma? Que destino mais cruel pode um homem esperar para si mesmo?
Meditei, quase sempre em horário laboral, durante longas horas para tentar encontrar uma forma de vencer esta miúda, mas tudo foi em vão.
“Tudo foi em vão…”, depois de dizer, e escrever isto, acabo de ter uma ideia que talvez resulte, talvez eu ainda tenha aquele “je ne sais quois”, sim… é isso! Aquela miúda vai ver uma coisa… mas… onde estão todos?! Bolas, a sala já está vazia.
Bem, já que aqui estou, vou aproveitar e fico para a próxima sessão."

Estava eu sentado, precisamente na última fila, quando uma mulher se aproximou de mim.
- Desculpe, esse lugar é meu. - disse ela...

FIM

16/03/06

Bú, O Ursinho

Era uma vez um urso, um ursinho na realidade.
Ele vivia com os pais numa linda floresta perto de um grande rio, o ursinho gostava muito desse rio porque era lá que ele ia pescar a sua comida preferida: salmões.
Bú, assim se chamava esse ursinho, também gostava de comer muitas outras coisas deliciosas como por exemplo amoras e mel, mas sem sombra de dúvidas que a sua comida predilecta no mundo inteiro eram os salmões.
Bú parecia ser um ursinho feliz, ele tinha uma família que gostava muito dele e tinha dois grandes amigos: um esquilo chamado Pintas e um porco selvagem chamado Piano, apesar disso, Bú não era inteiramente feliz, faltava-lhe qualquer coisa, principalmente faltava-lhe coragem para dizer à ursinha Flor que ele gostava dela.
Bú quando estava com os amigos Pintas e Piano era muito alegre e confiante mas quando estava com outros animais que não conhecia tão bem, ficava sempre muito inseguro e calado, tudo isto acontecia porque Bú tinha um pequeno problema, ele era gago.
Ele sentia tanta vergonha por ser o único urso gago na floresta inteira que um dia, quando a ursinha Flor lhe perguntou se ele queria brincar com ela, Bú teve tanto medo de começar a gaguejar que acabou por não dizer nada, Flor ficou muito triste nesse dia porque pensou que o Bú não queria brincar com ela.
Pobre Bú, ele bem que gostava de dizer à Flor que sim, que queria brincar com ela e que ela era muito bonita mas o ursinho teve receio que Flor fizesse como alguns colegas da sua escola e se começasse a rir dele…só por ser gago.
Numa certa tarde de Verão, Bú encontrou-se, como era hábito, com o esquilo Pintas e o porco Piano, debaixo da árvore mais alta da floresta.

- Então malta, o que vamos fazer, hein? Digam lá, o que vamos fazer? – perguntou o sempre irrequieto e cheio de energia Pintas.
- Pintas, está muito calor, é melhor ficarmos aqui a tarde toda debaixo desta deliciosa sombra. – disse o gordinho e pachorrento porco Piano.
- Vá lá, vamos fazer alguma coisa. – insistiu o Pintas.
- Bú, diz ao Pintas para estar quieto, eu fico a suar só de o ver aos pulos. – disse o Piano.
- C-c-calma pessoal, deixem-me pensar n-n-numa coisa para fazermos. – disse o ursinho Bú a sorrir.
- Então, Bú… já pensaste, já? Onde vamos? – perguntou o Pintas, enquanto andava à volta do porquinho Piano.
- Pintas, pára com isso, já estou a ficar tonto. – disse o Piano.
- Já sei! Que tal irmos dar um m-m-mergulho no rio? A água deve de estar d-d-d-deliciosa. – sugeriu o ursinho.
- Boa! É isso! Vamos lá. – disse o Pintas entusiasmado.
- Nem pensar, o rio é muito perigoso, além disso está muito calor para andar, eu não saio daqui. – protestou o Piano.
- P-p-podemos nadar na parte baixa do rio, ali não há p-p-problema, que tal? – disse o Bú.
- Não, eu não saio mesmo daqui. – afirmou o Piano.
- Olha, então vais ficar aqui a tarde toda sozinho, sem ninguém para falar nem brincar, vamos Bú? - respondeu o esquilo Pintas enquanto piscava o olho.

O ursinho Bú e o esquilo Pintas começaram a andar em direcção ao rio.

- Ei, malta! Esperem lá por mim, também vou, não quero ficar aqui sozinho… mas por favor, andem devagar, está bem? - disse conformadamente o porco Piano.

Piano juntou-se aos amigos e os três foram tomar um refrescante banho no rio.
Eles estavam entretidos a brincar na água quando de repente…

- E-e-esperem! Vocês não ouviram nada? – perguntou o Bú.
- Não, eu não ouvi nada… acho que tu deves ter ouvido o estômago aqui do Piano a dar horas… eh,eh,eh. – disse com ar de troça o esquilo Pintas.
- Que engraçadinho que tu és, Pintas. Vê lá se te caem os dentinhos. – respondeu zangado o porco Piano.
- Anima-te, amigo… eu estava a brincar contigo mas olha que já começo a sentir fome e que tal se nós…
- SOCORRO! – grita alguém, interrompendo o Pintas.
- Estão a ouvir? Eu tinha razão, alguém está em apuros… vamos. – disse o ursinho Bú.

Os três amigos saíram da água e correram rapidamente na direcção daquele pedido de ajuda… bem, o porco Piano teve algumas dificuldades em acompanhar os amigos mas a verdade é que ele se esforçou ao máximo.
O esquilo Pintas como era o mais leve e rápido foi o primeiro a ver o motivo daqueles gritos de socorro.

- Malta, malta… olhem ali, dentro do rio… é o Jeremias.

O ursinho Jeremias é o irmão mais velho da Flor, ele é colega de escola dos nossos amigos.

- Ele corre p-p-perigo! Porque é que ele veio nadar para a parte p-p-perigosa do rio?
Se ele largar aquela r-r-rocha a corrente vai arrastá-lo até à q-q-queda d’água.- disse o Bú.

Enquanto Jeremias continuava a pedir ajuda, o porco Piano chegou finalmente perto dos amigos.

- Aquele ali não é o Jeremias? … puff… puff… - perguntou o Piano, ainda a tentar recuperar o fôlego.
- É ele mesmo, o tal que passa a vida a gozar com nosso amigo Bú só porque ele gagueja de vez em quando. – disse o esquilo.
- Pois, e esse Jeremias também gosta muito de me chamar nomes, só porque eu sou assim… cheiinho. – disse o porquinho Piano cruzando os braços.

O ursinho Bú virou-se para os amigos e disse:

- Agora não podemos pensar nessas coisas, o Jeremias está em a-a-apuros, nós temos de o ajudar.

O Pintas e o Piano concordaram, era preciso fazer alguma coisa para ajudar o Jeremias.
Depois de pensar durante algum tempo, Bú teve uma ideia.
Ele pediu ao esquilo Pintas para subir a uma árvore e trazer o galho mais comprido que encontrasse, depois, já com o galho numa das patinhas, Bú aproximou-se da margem do rio, pedindo depois ao porquinho Piano, que tinha muita força, para agarrar na sua outra patinha, Bú inclinou-se o mais que conseguiu, tentando assim chegar com o galho até onde estava o pobre Jeremias.

- Jeremias, tenta agarrar o galho, nós depois puxamos-te. – gritou o Bú.
- Cuidado, malta! Tenham cuidado. – disse o esquilo Pintas preocupado.

Felizmente o plano do Bú deu resultado. Jeremias conseguiu agarrar-se ao galho e depois foi só puxá-lo para fora do rio.

- Viva, viva, conseguimos! – gritou o Pintas aos pulos.

O ursinho Jeremias, todo molhado, agradeceu muito a ajuda e prometeu nunca mais fazer troça de ninguém.
Ele contou que caiu dentro do rio porque escorregou quando estava a brincar com um amigo muito perto da margem, e como esse amigo não sabia o que fazer foi a correr pedir ajuda aos adultos.

- O importante é que t-t-tudo está bem agora, não é pessoal? – disse com ar feliz o ursinho Bú.
- Claro, mas toda esta ginástica abriu-me imenso o apetite. – disse o porquinho Piano enquanto esfregava a barriguita.
Todos deram uma gargalhada.

Instantes depois apareceu, muito aflita, a família do ursinho Jeremias, ele tratou logo de acalmar todos dizendo que estava bem e que tinha sido salvo graças à coragem do Bú.

- O-o-ora, não foi nada, sem a ajuda dos meus amigos Pintas e Piano eu não teria conseguido f-f-fazer nada. – disse o Bú com ar envergonhado.

Todos estavam felizes e aos poucos começaram a regressar às suas casinhas, o ursinho Bú ficou sozinho a olhar para o pôr-do-sol.

- Bú? – disse a ursinha Flor ao aproximar-se dele. – Queria agradecer-te por teres salvo o meu irmão, foste muito, muito corajoso, obrigado. – disse ela.
O ursinho, com medo de começar a gaguejar muito não disse nada, apenas sorriu.
Flor sorriu-lhe e depois virou-se para ir para casa.

- F-F-Flor. – disse timidamente o ursinho. – Posso te a-a-a-a-acompanhar até c-c-casa? – perguntou ele.
- Claro! – respondeu a ursinha Flor a sorrir.

Os dois ursinhos deram as patinhas e caminharam juntos na direcção do pôr-do-sol.
Muitos anos mais tarde o Bú e a Flor casaram um com o outro, tiveram lindos filhotes e foram felizes para s-s-sempre.

FIM

27/12/05

O Código Dá Vinte

Eram exactamente vinte horas quando ela entrou no meu gabinete como se fosse um TGV Lisboa – Porto.
Ela apanhou-me completamente desprevenido, nem tive tempo de acabar o que estava a fazer, de qualquer das formas achei melhor puxar as minhas calças para cima.
A estonteante mulher estava visivelmente assustada, pedi-lhe para que tivesse calma e para que tentasse respirar pausadamente, isso fez com que a minha atenção se centrasse nos seus voluptuosos seios, parecia que eles queriam sair para fora da extremamente justa blusa… fiquei logo com a impressão de já ter visto aquele par de perfeição em algum lugar.
Quando ela se sentou e cruzou as pernas, constatei que para além de uma linda mini-saia, ela tinha também umas pernas que me eram claramente familiares, definitivamente eu já tinha visto aquele corpo antes, mas onde… onde?
A resposta bateu-me na cabeça como um taco de basebol: ela era Martina Del Swartzcoff, vinte anos de idade e a única mulher a ser eleita dois anos seguidos como Miss Outubro… Meu Deus, como me lembro bem daqueles meses.
As duas semanas consecutivas a trabalhar como detective privado granjearam-me o know-how essencial para chegar à conclusão que diante dos meus olhos estava uma mulher em apuros.
Ela tirou da bolsa um cigarro, quando o dito roçou aquelas duas almofadas de seda, que eram os seus lábios, já eu estava com o fósforo aceso e pronto para lhe dar lume… ao cigarro.
Pedi para que ela me contasse o que se passava e sentei-me em cima da secretária para melhor a ouvir, e também porque daquele ângulo superior eu tinha uma visão privilegiada da razão… das duas razões porque Martina havia sido eleita Miss Outubro.
Foi por entre algumas passas que ela me assegurou estar a ser perseguida, isso porque ela sabia de um segredo… um segredo terrível.
Levantei-me e passei por trás dela, isto sem qualquer intenção de apreciar o seu esplendoroso traseiro (continuava lindo), assim que me aproximei da janela alguma coisa fez com o vidro se partisse.
Martina assustou-se e imediatamente correu para os meus braços, eu nem queria acreditar, a Miss Outubro estava nos meus braços… e desta vez em carne e osso.
Fosse eu um reles verme e tinha-me aproveitado sem dúvida daquele angelical ser, mas como poderia eu ter a ousadia de me aproveitar de uma pessoa assim tão bela e incrivelmente excitante?
Ainda por cima uma pessoa, que mesmo sem o saber, já tinha sido a fonte inspiradora de tantos e tão deliciosos momentos de prazer… não, eu seria incapaz de descer tão baixo.
Martina, ainda recolhida nos meus braços protectores, implorou para passar aquela noite em minha casa.
A doce criatura estava verdadeiramente assustada com tudo aquilo.
Acalmei-a dizendo-lhe que o vidro da janela poderia ter-se partido por causa de um pombo mais distraído, ou então teria sido um miúdo na brincadeira… um miúdo com a pontaria e força necessárias para partir o vidro de uma janela de um gabinete situado no vigésimo andar.
Acima de tudo assegurei-lhe que a bala encontrada no chão, perto do vidro partido, não significava, nem provava, absolutamente nada.
Martina ficou mais tranquila.
Claro, para ser sincero, eu bem que gostaria de a ter levado para casa comigo naquela noite, mas infelizmente a minha cabra é muito ciumenta, por isso resolvi chamar um táxi que a levasse a casa.
Quando ela entrou no carro pedi-lhe que voltasse no dia seguinte, ainda haviam muitas coisas por esclarecer, entretanto, e para que ela se sentisse mais segura, eu garanti-lhe que nada de mau lhe iria acontecer até lá.
Martina Del Swartzcoff foi assassinada!
Soube dessa tragédia no dia seguinte, depois de tirar à força, o jornal da boca da Maria, a minha cabra de estimação.
Fiquei perplexo com a notícia escancarada na primeira página: “Coelhinha Assassinada! Martina Del Swartzcoff, eleita duas vezes Miss Outubro, foi ontem à noite assassinada com vinte tiros. Martina deslocava-se num táxi a caminho de casa quando subitamente, de dentro de um carro que a perseguia, alguém começou a disparar…”.
Pobre miúda, tão nova… enquanto lia, na minha cabeça começaram a ser formadas algumas perguntas que me inquietavam: quem teria feito aquilo, estaria Martina realmente a ser perseguida, qual o segredo que ela guardava e, talvez a dúvida que mais me preocupava, quem é que me iria pagar os vinte euros que Martina me ficou a dever pela consulta?
Peguei na minha gabardina e meti-me a caminho do lugar onde eu achava que iria encontrar algumas respostas: a Mansão Playboy.
Não foi difícil entrar, estes tipos adoram qualquer tipo de publicidade, principalmente a gratuita, por isso inventei um estranhíssimo sotaque irlandês e disse chamar-me Jack McCormack, jornalista em ascensão da revista “M'n'M’s”.
Mandaram-me sentar e esperar que me chamassem, por sorte o “Patrão” estava na Mansão e iria receber-me.
Enquanto eu esperava aproximaram-se de mim duas… deusas, palavras não fazem justiça suficiente à estonteante beleza de ambas, apenas posso garantir que se elas não fossem de raças diferentes seriam gémeas.
As duas estavam vestidas com uma espécie de uniforme lá do sítio: jeans extra-justos e top preto com o logótipo da Playboy estampado a dourado.
Assim que a mulata olhou para mim eu soube imediatamente que algo mágico iria acontecer ali, levantei-me, contudo ela fez sinal para eu permanecer sentado, obedeci.
Ela virou-me as costas e fez mais um sinal, desta vez destinado à amiga ruiva que se aproximou.
As duas ficaram cara a cara, literalmente.
A ruiva passou o rosto pelos cabelos ondulados da amiga, eu nem pestanejava.
Subitamente a mulata deu meia volta e ficou de costas voltadas para a amiga, eu continuava sem pestanejar.
A “coelhinha” ruiva começou a deslizar as mãos pela cintura da colega enquanto lhe beijava o pescoço, a mulata invadida pelo prazer mordeu os lábios, eu pestanejei, naquela fracção de segundo, já a mulata estava novamente virada para a ruiva, elas beijaram-se.
Aquilo era como se eu estivesse a ver o Canal Playboy, com a vantagem de eu estar lá… não resisti à tentação, levantei-me.
Assim que me aproximei delas, cada uma agarrou-me num braço e levaram-me; mesmo sem saber para onde ia pus o mais estúpido sorriso que alguma vez tinha usado.
Entrámos numa sala e o meu sorriso foi à vida, diante dos meus olhos estava, nem mais nem menos, que o “Imperador” em pessoa: Hugh Hefner, fundador do império Playboy.
Fiz as minhas contas: eu, duas miúdas e um velho pervertido… disse imediatamente que não alinhava em cenas maradas.
Hefner soltou uma sonora gargalhada e convidou-me a sentar; enquanto eu me sentava reparei que naquela sala, para além da secretária onde Hefner estava sentado, as paredes estavam cheias de fotografias, quase em tamanho real, das mais famosas “playmates”, no entanto não vi nenhuma fotografia da Martina, logo ela que tinha sido a única a ser eleita duas vezes seguidas Miss Outubro…porque teria sido ela excluída?
A rapariga mulata e a amiga ruiva colocaram-se ao lado do velho Hefner, que continuava a falar como um papagaio sobre a história daquela empresa; talvez tenha sido impressão minha, ou então estaria ainda meio atordoado por causa do espectáculo das miúdas, mas pareceu-me que os dentes incisivos superiores de Hefner eram anormalmente grandes… quase como dentes de coelho.
Passados poucos minutos a porta da sala abriu-se, entraram dois tipos enormes, parecidos com lutadores de luta-livre, cheguei à conclusão que eles eram funcionários porque estavam vestidos exactamente da mesma maneira que as miúdas… isso deixou-me preocupado.
Ainda mais preocupado fiquei quando um deles sussurrou qualquer coisa no ouvido de Hefner… algo me dizia que eu estava em apuros.
Com um simples estalar de dedos Hefner mandou as miúdas sair da sala, não tive dúvidas, o meu disfarce tinha sido descoberto.
Levantei-me e tentei sair de fininho mas isso não passou mesmo de uma tentativa, os dois tipos enormes, ainda que ridiculamente vestidos, eram bem mais fortes que eu, por isso voltei a sentar-me quando eles se puseram ao meu lado.
O velho Hefner levantou-se e veio ter comigo, perguntou-me porque é que eu tinha mentido dizendo que era um jornalista, pensei rápido e respondi que aquela foi a única forma que eu encontrei de falar com ele por causa da Martina, Hefner ficou branco, era óbvio que aquele não era um tema bem vindo.
Hefner queria saber se Martina me tinha falado no Código, aliviei a tensão dizendo que eu apenas pretendia receber os vinte euros que ela me tinha ficado a dever, Hefner deu uma gargalhada.
Ele engoliu a história, pagou-me e eu saí dali para fora mesmo a tempo, ou não fosse o meu nome Justin Time.
Cheguei a casa e fui tomar um duche.
Qualquer pessoa de bom-senso iria esquecer o que se tinha passado mas não eu, achei que deveria fazer alguma coisa, qualquer coisa, era mais que evidente que Hefner estava envolvido na morte da Martina, sem dúvida ela sabia demais e foi preciso silenciá-la... mas que raio seria o Código?
Felizmente tenho uma boa memória, recordei todos os passos que dei até então e cheguei à seguinte conclusão: o Código dá Vinte.
Talvez para algumas pessoas os factos que vou descriminar não passem de simples coincidências, mas para mim eles são a prova irrefutável que o Código dá Vinte.
Eis as provas:

Martina entrou no meu gabinete às VINTE horas.
O nome Martina Del Swartzcoff tem exactamente VINTE letras.
Martina tinha VINTE anos.
Martina foi eleita Miss Outubro (mês 10), duas vezes seguidas, logo 10+10=VINTE.
O meu gabinete fica no VIGÉSIMO andar.
Martina foi assassinada com VINTE tiros.
Martina ficou a dever-me VINTE euros.
O nome Hugh Hefner tem 10 letras, 10 letras x 2 nomes = VINTE.
Hefner nasceu em 9/4/1926, significa que 26 - 19 (ano) = 7 ... 7 + 9 (dia) = 16 ... 16 + 4 (mês) = VINTE.

Mas o que significa o Vinte, e que relação tem Hefner com esse número?
Fiz mais algumas pesquisas por minha conta, que incluíram a compra massiva de revistas Playboy, e mais uma vez o resultado final foi surpreendente.
Hugh Hefner nasceu em Chigaco, Illinois, essa constatação é do conhecimento público, o que poucas pessoas sabem é que ele descende directamente dos primeiros nativos que habitaram aquela região, os Potawatomis.
Um ramo familiar dessa tribo, aquele a que Hefner pertence, nasceu com graves deformações físicas: orelhas enormes, corpo inteiro coberto de pêlo, dentes incisivos superiores gigantescos; foi-lhes dado o nome de Plabo (este nome viria a dar origem à palavra Playboy), que significa no dialecto dos Potawatomis “homem-coelho”.
Ao longo de gerações os Plabo foram votados ao ostracismo pelos outros ramos familiares descendentes dos Potawatomis, foram inclusivamente expulsos daquela região, mudando-se mais para Norte.
Vingança mortal foi jurada.
Existem hoje em dia milhões de Plabo’s espalhados pelo Mundo, a sua existência é contudo difícil de provar, uma vez que eles vivem escondidos da sociedade, ou então, aqueles que realmente são visíveis sujeitaram-se a grandes intervenções cirúrgicas para conseguirem passar por pessoas ditas “normais”, Hugh Hefner é um deles.
Ele é inclusivamente o Alto Comandante da PSIHC – Plabo, Sociedade Independente de Homens-Coelho – durante anos Hefner usou e continua a usar a sua revista Playboy para fazer passar mensagens ocultas através dela, o que para o comum dos mortais são simples mas belas fotografias de mulheres nuas, para os Plabo’s são orientações militares com vista ao ataque… e é aqui que entra finalmente o Vinte.
O ataque final dos Plabo’s, aquele que vai dizimar a população mundial por completo, já tem data marcada, será no ano 2020.
Em conclusão lanço um apelo, um apelo ao Mundo, ninguém está excluído: temos de impedir que as loucas intenções dos Plabo’s se tornem em realidade.
O que sugiro é uma coisa difícil de concretizar, aliás, muitíssimo difícil, mas é a nossa única hipótese: vamos eliminar a forma de contacto entre os Plabo’s, para isso o sacrifício supremo tem de ser activado: temos de deixar de comprar revistas Playboy, bem sei o sofrimento e dor que isso implica mas tem de ser, a salvação do Mundo está nas nossas mãos.

Fim

nota para mim mesmo: se esta treta não vender com gajas nuas, pensar numa alternativa, talvez substituir as fotografias por quadros de pintores famosos como Picasso… ou melhor, como Da Vinci, o título até podia ser “O Código Da Vinci”… talvez meter a Igreja no meio. É esticar muito a corda mas pode ser que alguém engula isso…

D.Brown

FIM

16/12/05

A Mais Pequena História de Natal do Mundo


Era uma vez um velho pedaço de papel reciclado, o seu sonho… sim, os papéis também têm sonhos, mesmo os reciclados, o sonho dele era ser útil.
Ele percorreu milhares de quilómetros, literalmente ao sabor do vento, durante essa longa viagem, o pedaço de papel reciclado, viu e ouviu muita coisa, mas de que vale ser um papel se não se pode escrever nele aquilo que se vive ou viveu?
Certo dia o já amarelecido pedaço de papel reciclado ficou preso numa árvore, “é o fim!”, pensou ele, de facto, que utilidade poderia ter um velho pedaço de papel reciclado no topo de uma árvore?
Pois bem, foi precisamente esse pedaço de papel que chamou a atenção de uma criança para aquela árvore.
E lá está ele, o velho pedaço de papel reciclado foi moldado numa estrela e enfeita agora o topo da árvore de Natal da família daquela criança.
Velho… reciclado?! Sim, mas orgulhosamente útil e feliz.
FELIZ NATAL!

(voz de @vilmacorreia)

14/11/05

ISTO É UM ASSALTO!

“ISTO É UM ASSALTO!” – gritou Nunes Martim virado para o empregado do Banco que, estranhamente, se começou a rir… como é que Nunes Martim, um homem de trinta e quatro anos e mais ou menos bem-parecido, se tornou num assaltante de Bancos e porque é que o empregado do Banco se riu?!
Para obter as respostas é necessário fazer um conveniente flashback… cá vai ele:

Nunes Martim nasceu e cresceu com uma ideia fixa na cabeça: tornar-se no maior e mais brilhante cómico que o País alguma vez viu… e ouviu.
O único, mas ao mesmo tempo, grande problema é que ninguém o levava a sério, e não ser levado a sério é provavelmente a pior coisa que se pode fazer a um cómico.
Grande parte da adolescência de Martim foi dedicada ao estudo, em pormenor, de actuações dos seus cómicos preferidos da altura, mais concretamente ele passava horas intermináveis colado ao ecrã da televisão a ver os noticiários.
Porém, todas aquelas horas de trabalho duro e árduo, passadas com o cu sentado no sofá, pareciam não ter servido para nada, uma vez que ninguém ligava absolutamente nada ao que Martim fazia ou dizia.
Tudo isto mudou quando Martim fez vinte anos, nesse dia alguém lhe deu a primeira grande oportunidade para que ele demonstra-se o seu real valor: Martim foi trabalhar para uma Fábrica de confecções (o “alguém” era o pai de Martim).
A experiência fabril revelou-se muito produtiva, não necessariamente para a Fábrica, Martim usou (e abusou) dos dois anos e meio em que lá “trabalhou” para efectuar alguns “estudos humanizados de comportamento alheio quando submetidos a situações potencialmente cómicas”… basicamente ele foi o palhaço de serviço.
Foi ainda durante a estadia naquela unidade fabril que Martim conheceu duas pessoas que viriam a ser essenciais no seu futuro: Tai-Pan – a namorada Sul-Coreana e Varetas – um tipo com mais de dois metros de altura que se tornou no seu melhor amigo.
Martim achava-se mais do que pronto para conquistar o País com o seu peculiar sentido de humor, nessa altura ele tinha quase vinte e três anos de idade e na sua cabeça a hora da consagração nacional tinha chegado, era por isso necessário seguir em frente, encarar o futuro olhos nos olhos e deixar a Fábrica para trás… a carta de despedimento que ele recebeu ajudou-o imenso nessa decisão.
Desempregado, sem dinheiro, com uma namorada muito bonita mas incapaz de pronunciar mais do que um limitado conjunto de palavras em português, com um novo melhor amigo capaz de pronunciar um gigantesco conjunto de palavras em português mas quase todas sem sentido, com uma carreira no “showbiz” em risco de terminar mesmo antes sequer de ter começado e com… uma enorme dor de cabeça, com tudo isto, Martim, fez aquilo que qualquer pessoa faria quando colocada em situação semelhante: foi pedir um aumento na mesada aos pais.
A “consulta familiar” foi um estrondoso sucesso em termos de entretenimento (os pais de Martim fartaram-se de rir), porém em termos financeiros foi uma nulidade.
A Martim só restava seguir um caminho: aquele que o levaria ao gabinete do Fundo de Desemprego local.
Acompanhado por Tai-Pan e Varetas, Martim entrou cabisbaixo no malfadado gabinete, no entanto foi exactamente aí, nesse improvável local, que a fulgurante escalada de Martim rumo ao sucesso teve o seu início.
A atmosfera dentro do edifício governamental era, como em todos os edifícios governamentais, uma atmosfera pesada, havia uma fila enorme de pessoas em pé, todas com ar de quem estava num funeral (no seu próprio funeral), elas aguardavam mais ou menos pacientemente a sua vez de serem atendidas pelas simpáticas funcionárias… correcção: havia apenas uma funcionária e a simpatia dela, a julgar pelo modo como atendia as pessoas, ter-se-ia perdido para sempre nos lacrados corredores do passado.
Para “animar” o povo, o Governo (ou algo semelhante) resolveu pendurar uma pequena televisão numa das paredes, na altura estava a ser transmitida, sem som, uma entrevista a um candidato a Presidente da República.
Martim, qual Comandante Supremo da maior super-potência mundial, examinou meticulosamente o cenário, era preciso agir, e agir depressa, o tédio estava a atacar com todas as armas possíveis e imaginárias.

Martim: Pessoal, temos de fazer alguma coisa… estas pessoas precisam da nossa ajuda senão ainda se transformam em estátuas… olhem para elas, parecem zombies a caminho da incineração.
Varetas: Ainda a semana passada vi um filme sobre zombies, aquilo metia mesmo medo… eles só eram destruídos com espuma…
Martim (pensativo): Espuma? Hum…
Tai-Pan: O que é um zombies?
Varetas: Zombies são pessoas mortas que pensam estar vivas.

Varetas apontou para a televisão, onde a entrevista muda ao político continuava.

Varetas: Vou-te dar um exemplo prático, Tai-Pan. Olha para a televisão… vês aquele homem engravatado e com ar de quem fez um pacto com o Diabo? Vês os olhos dele? Aquilo é um zombie.
Martim (entusiasmado): É isso!
Varetas: Ainda bem que concordas comigo, eu…
Martim: Vamos usar o extintor!
Varetas: Extintor?!
Tai-Pan: O que é um extintor?!
Varetas: Espera… tu não estás a pensar em usar um extintor, pois não?!
Martim: Claro que não! Estou a pensar em usar dois extintores.
Tai-Pan: Mas o que é um extintores?
Martim: Já vais perceber, Tai-Pan. O plano é o seguinte: eu vou ali para o meio e começo a contar uma piada sobre o Natal, quando eu disser a palavra “neve”, vocês os dois, com jeitinho, despejam um bocado dos extintores em cima de mim… o pessoal vai curtir bué a cena.
Tai-Pan: Um extintores… faz neve?!
Varetas: Achas mesmo que isso vai funcionar?
Martim: Não. Tenho a certeza. Agora, cuidado, vocês os dois têm de despejar os extintores com jeitinho.

“Despejar os extintores com jeitinho”, esta frase ecoou interminável e dolorosamente dentro da cabeça de Martim, à medida que ele e os amigos eram transportados num carro da polícia rumo à esquadra mais próxima.
Tudo aquilo que acontece na vida tem sempre dois lados: o bom e o mau, até mesmo os políticos têm um lado bom… tudo aquilo que acontece na vida, à excepção dos políticos, tem sempre dois lados: o bom e o mau.
O lado mau da “performance” de Martim é que ele foi multado pela polícia por “atentado contra o bom funcionamento da Função Pública”, o lado bom é que Martim, assim que saiu da esquadra, foi imediatamente abordado por uma equipa de repórteres televisivos.
O lado ainda melhor de tudo é que aquele não era um canal de televisão normal, não senhor, aquele era um canal diferente, único, excitante e inovador, um canal vocacionado apenas para a exploração fria e crua de escândalos, algo nunca visto até então.

Repórter: Como é que teve a brilhante ideia dos extintores?
Martim: Bem… para ser franco a ideia até nem foi minha, eu…
Repórter: É pena… você poderia ficar famoso por isso.
Martim: Famoso?! Claro que fui eu, Nunes Martim, quem teve a ideia… a brilhante ideia dos extintores… sabe, desde criança que o meu sonho é ser famoso, eu lembro-me que…
Repórter: Diga aos nossos telespectadores… você foi agredido pela polícia?
Martim: Não… só fui multado.
Repórter: É pena… isso iria torná-lo num herói.
Martim: Herói?! Bem… eu não queria dizer nada, mas a verdade é que… fui insultado.
Repórter: Só isso… só insultos?
Martim: Insultos… ao mesmo tempo que me davam estalos… na cara.
Repórter: Estalos?
Martim: Ao princípio, mas depois deram-me murros… fortes murros… e pontapés… no estômago. Nem sei como não fiquei com marcas no corpo… da agressão… brutal.
Repórter: Vai apresentar queixa contra os polícias?
Martim: Acho que não vale a pena, eles estavam só a fazer o trabalho deles.
Repórter: É pena… isso iria torná-lo num modelo a seguir pela juventude.
Martim: Vou até às últimas instâncias… Supremo Tribunal, se for preciso… lutarei para que ninguém passe por aquilo que eu passei lá dentro… foi mau de mais.

A entrevista, quando foi para o ar, teve tanta audiência que o Director-Geral daquele canal quis imediatamente marcar uma reunião com Martim.

Director-Geral: Parabéns! O amigo tornou-se numa verdadeira estrela, sabia? Nós recebemos muitas chamadas e e-mails de pessoas interessadas em saber mais coisas sobre si… diga-me, já pensou em fazer televisão?
Martim: Não, para ser franco, não. Nunca me interessei muito por electrónica.
Director-Geral: Realmente você tem piada, mas sabe, hoje em dia já não basta fazer rir, é preciso chocar as pessoas, acha que era capaz disso?
Martim: Acho que não, doutor, eu teria de ter um traseiro enorme para conseguir isso... para chocar, digo.
Director-Geral: Vejo que temos homem! Gosto muito de pessoas assim… como você.
Martim: Tem piada, sabia que a minha namorada diz-me o mesmo?

Depois da elucidativa reunião, Martim foi obviamente contratado e começou imediatamente a pensar num programa de televisão inovador para apresentar, algo tão brilhante e genialmente original que ele estava certo iria revolucionar o panorama televisivo mundial.
Algumas semanas depois, Martim apresentou o seguinte manuscrito ao Director-Geral:

“A minha ideia é…”

Como sempre, o Director-Geral achou que aquilo era mais uma piada e riu-se imenso, não compreendendo ele o drama da coisa.
Martim começou então, ao serviço daquele canal, a fazer entrevistas no exterior, Varetas - que entretanto se tinha despedido da Fábrica, acompanhou-o como camera.
As entrevistas começaram a ter um fenomenal sucesso, elas eram realmente… diferentes.
Como esta, feita a uma estrela de rock internacional:

Martim: Está a gostar de Portugal?
Rock-Star: Ah, sim… claro… é o meu país preferido neste continente.
Martim: Mas você é europeu, não prefere o seu próprio país?
Rock-Star: Portugal fica na Europa?!
Martim: Olha este… amigo, quem faz as perguntas difíceis aqui sou eu... adiante, conhece algum músico português?
Rock-Star: Claro que conheço!
Martim: Pode dar um ou dois exemplos desse raro conhecimento?
Rock-Star: O Figo e o Cristiano Ronaldo… eles são bestiais!
Martim: Mas esses são futebolistas… sabe o que é um músico?
Rock-Star: Ouça lá, vai passar a entrevista toda a contrariar-me?
Martim: Calma, homem… estou apenas a tentar ajudar…
Rock-Star: Deixe isso para os meus assessores.
Martim: É verdade que você foi à “Casa Rosette”, um conhecido bar de… enfim, divertimento sexual?
Rock-Star: …
Martim: Não diz nada?
Rock-Star: Só respondo a perguntas de música… da minha música.
Martim (sussurrar): Era isso que eu temia…
Rock-Star: Como?
Martim: Acha que alguém vai aparecer para o concerto logo à noite?
Rock-Star: Claro… o gigantesco estádio vai estar lotado, para sua informação.
Martim: Pobres diabos… e diga lá, você vai tocar o seu sucesso?
Rock-Star: Qual deles?
Martim (sussurrar): Bolas, ele tem mais do que um?!
Rock-Star: …
Martim: Você sabe realmente tocar algum instrumento?
Rock-Star: Está a ver aquele monte de instrumentos ali? São todos meus… todos!
Martim: Sim… mas você sabe tocar algum realmente?
Rock-Star: São todos meus, sabe o que isso significa? Que eu tenho dinheiro… muito dinheiro… ao contrário de você, que para ganhar a vidinha tem de entrevistar pessoas como eu.
Martim: Sabe que mais? Você tem razão, eu não deveria baixar tanto os meus padrões… Varetas, corta!

Foram entrevistas como esta que granjearam grande fama a Martim e grande proveito financeiro ao Director-Geral.
Martim, Tai-Pan e Varetas foram entretanto viver juntos para um apartamento de luxo.
A popularidade de Martim cresceu de tal forma que, onde quer que ele fosse, as pessoas já ficavam à espera que ele dissesse ou fizesse alguma coisa totalmente inesperada.
Certo dia, mais concretamente numa terça-feira… à tarde… onde o céu estava limpo e a temperatura rondava os 21 graus, nesse exacto dia… às 17 horas, Martim e Varetas entraram numa estação de serviço para atestar o carro.
Quando eles iam a pagar deram conta que as carteiras de ambos haviam sido roubadas, Martim virou-se para o funcionário e disse: “Amigo… não vamos pagar, roubaram as nossas carteiras.”, o funcionário, profundo conhecedor da fama de Martim, riu-se e enquanto piscava um olho a Martim perguntou-lhe quando é que aquilo ia passar na televisão, “Em breve… em breve”, respondeu Martim enquanto se afastava rapidamente daquele local.
Ainda incrédulo com aquela situação, Martim entrou no carro, sentou-se e elaborou ali mesmo uma teoria que para sempre iria modificar o rumo da sua vida: “Se eu tenho de pagar qualquer coisa mas digo que não tenho dinheiro para pagar e mesmo assim as pessoas deixam-me ir embora sem pagar… isso significa que se eu for a um Banco e disser que quero todo o dinheiro que estiver no cofre as pessoas vão dar-mo… e a sorrir.”.
A teoria pareceu bastante credível a Varetas, assim os dois entraram no Banco mais próximo para tirar a prova dos nove.
Martim entrou à frente, Varetas com a câmara de filmar desligada ao ombro entrou logo atrás... resultou!
Todas as pessoas que estavam no Banco acharam imensa graça ao “assalto”, até os seguranças, sempre tão simpáticos, quiseram colaborar levando o dinheiro até ao carro.
Martim planeou assaltar mais alguns Bancos e depois, quando já tivessem bastante dinheiro, ele, Varetas e Tai-Pan iriam fazer uma viagem… uma longa viagem, sem bilhete de volta… e os planos teriam efectivamente dado certo, caso Varetas e Tai-Pan não tivessem fugido com o dinheiro todo.
Nunes Martim jurou-me que tudo isto é verdade, que aconteceu realmente… mas é claro, nunca se pode confiar totalmente no pessoal da Ala B… mas mesmo que não seja verdade, a ideia do canal de televisão feito só com escândalos não me pareceu uma má ideia… não senhor… quem sabe, quando eu sair daqui… quem sabe…

12 de Dezembro de 1979
Hospício Central dos Bem-Aventurados – Ala A
José E. Moniz

FIM

02/11/05

Fábula dos Dois Montes

Todos os dias, quer estivesse sol, chuva, vento, frio ou calor, todos os dias, ininterruptamente durante 57 anos, um velho homem de então 72 anos, subia ao cume do monte mais alto da sua aldeia e sentando-se sempre na mesma pedra, ficava a contemplar em total silêncio o horizonte.
Na realidade o homem concentrava a sua atenção num ponto específico: o monte mais alto da aldeia vizinha, onde um outro homem, sensivelmente da mesma idade, realizava o mesmo ritual de subir ao cimo do monte todos os dias.
Religiosamente, os dois homens passavam duas horas do dia simplesmente a olharem-se ao longe.
As duas aldeias, fartas de não obterem qualquer tipo de explicação para aquele estranho fenómeno, decidiram pôr os dois velhos frente a frente pela primeira vez.
Assim, a meio caminho entre as duas aldeias e com as respectivas populações presentes em peso, os dois homens foram postos cara a cara.
Todos aguardavam com enorme expectativa pelo desvendar do mistério.
Os dois velhos olharam-se nos olhos, fizeram uma pausa e depois subitamente desataram a chorar desalmadamente.
Sabem, apesar de todos aqueles anos, os dois homens nunca se tinham visto de perto, na verdade eles julgavam que a pessoa que estava sentada no outro monte era… uma mulher.
Sem saberem como nem porquê, os dois apaixonaram-se por aquela imagem.
Eles viveram décadas na ilusão de que “ela” era a mulher das suas vidas e que mais cedo ou mais tarde “ela” iria tomar a iniciativa de se aproximar.
Foi um dia duro aquele, para os dois velhos homens, contudo serviu para que eles aprendessem e ao mesmo tempo ensinassem uma grande lição de vida: não se pode passar uma vida inteira a fantasiar, às vezes, digo, muitas vezes, é bem melhor confirmar os dados… pelo sim, pelo não.
Desde aquele dia nunca mais ninguém foi visto sentado no cimo daqueles montes… até eu aparecer.

FIM

01/10/05

O Príncipe Gay

Num sítio onde o chão era todo em tons de verde, o céu laranja, as nuvens azul-bebé, onde não existia noite mas que a um determinado momento do dia o céu tornava-se azul-marinho e as nuvens lilás, nesse colorido sitio, nasceu num céu desses, um Príncipe.
Ao recém-nascido, filho primogénito do Rei Flaput e da Rainha Flámi – regentes do Reino da Flilândia, foi dado o nome de Príncipe Flá.
Passadas algumas mudanças de cor nos céus, o Rei determinou que Flutêncio Flu – um sábio do Reino, ficaria encarregue do desenvolvimento físico e intelectual do novel Príncipe.
O Príncipe Flá contava já 1.440 mudanças de céu – cerca de 4 anos dos nossos, quando a Rainha Flámi deu à luz um novo filho, o Príncipe Flé.
Tal como fizera da primeira vez, o Rei Flaput nomeou um sábio para acompanhar o crescimento do novo filho, o sábio designado foi Flarto Flop.

O céu foi mudando de cor…

O Príncipe Flá tornou-se um jovem esbelto, bem-parecido e culto, por sua vez o seu irmão, o Príncipe Flé pouco cresceu fisicamente, a bem da verdade ele não cresceu quase nada, era praticamente um anão, por isso a conselho do sábio Flop o Príncipe mais novo começou a andar com uma enorme – gigantesca, cabeleira estilo afro para combater a sua mais que evidente falta de altura.
O Príncipe Flá era alvo da inveja do irmão, não só pela sua esbelta figura, sempre impecavelmente vestido, penteado e calçado, mas também pelo sucesso que o primogénito tinha entre as raparigas, era hábito o Príncipe Flá dar longos passeios até às margens do Rio Flis – onde as águas eram cor de chá de limão, na companhia de belas jovens.
Contudo, o Príncipe Flá, aparentemente, não demonstrava qualquer tipo de interesse amoroso por nenhuma das raparigas, facto esse que se viria a tornar na última esperança do Príncipe Flé alcançar o trono em detrimento do seu irmão.
Segundo uma tradição secular o pretendente ao trono do Reino da Flilândia, no dia em que comemorar 7.560 mudanças de céu – 21 anos, terá também, nesse mesmo dia, de contrair matrimónio, caso isso não se verifique o novo Rei será o segundo elemento na linha de pretendentes ao trono.
Como essa data se aproximava rapidamente e o Príncipe Flá continuava a não dar mostras de se querer casar tão cedo, o Rei Flaput mandou chamar à sua presença o sábio Flutêncio Flu.
Insatisfeito com as desculpas e pedidos de paciência feitos pelo sábio, o Rei fez-lhe um ultimato: se o Príncipe Flá não se casasse na data prevista, Flutêncio seria decapitado.
O velho sábio contou ao Príncipe Flá a conversa que tivera com o Rei, o Príncipe, emocionado, abraçou o Flutêncio e disse-lhe que o melhor para todos era que eles revelassem finalmente a verdade, que o Príncipe era gay.

Flutêncio pediu algumas mudanças de céu ao Príncipe para pensar no assunto.

Assim, depois de muitos céus azul-marinho passados em claro a tentar encontrar uma solução para o problema, e quando faltavam somente 15 mudanças de céu para o fim do ultimato, o sábio Flutêncio Flu teve uma ideia.
Nos aposentos do Príncipe Flá, o sábio Flutêncio expôs a sua ideia: chamar, para tentar ajudar o Príncipe, o mais másculo, viril e machista de todos os homens do Reino da Flilândia, nada mais nada menos que o Flota Flex, o Ferreiro.
A ténue esperança do sábio era que Flota ensinasse o jovem Príncipe a tornar-se num verdadeiro macho e assim conquistar o coração de uma donzela.
O Príncipe Flá demonstrou alguma reticência em aceitar uma ideia que lhe parecia completamente louca mas depois deu-se conta que essa mesma ideia seria a única forma de salvar o pescoço do velho sábio, por isso aceitou.

O tempo corria contra eles…

Foi chamada, com carácter de urgência, a presença de Flota Flex perante o sábio Flutêncio Flu.
Flota, um homem com uma compleição física absolutamente fora do normal – media cerca de 2 metros distribuídos por uns 120 quilos, ouviu com atenção a proposta feita pelo sábio, Flota teria recusado imediatamente tal coisa, caso o sábio não lhe tivesse prometido ajudar a família.

O Acordo foi selado e os treinos para transformar o delicado Príncipe num D.Juan tiveram inicio…

Durante 7 longas mudanças de céu, Flota ensinou e fez de tudo para que o Príncipe Flá passasse a ter uma atitude mais máscula e viril mas nada… mesmo depois de todos os ensinamentos o Príncipe continuava com a mesma maneira de ser delicada, feminina e com um desconcertante sentido de humor que fazia o Flota rir-se descontroladamente, os dois acabaram por se tornar amigos.
O dia em que o Príncipe se teria de casar aproximava-se rapidamente, o sábio Flutêncio vendo as coisas mal paradas resolveu marcar mais uma reunião secreta para encontrar uma nova solução para o problema.
Flota, Flutêncio e o Príncipe Flá reuniram-se nos aposentos do último julgando assim estarem a salvo dos olhares e ouvidos indiscretos, porém, escondido num dos armários do Príncipe Flá estava, a ouvir tudo, o seu irmão, o Príncipe Flé.
Ignorando o facto de que estavam a ser espiados, os três debateram durante algum tempo o que fazer porém ninguém conseguia encontrar uma solução.
A dado momento da conversa Flota, revelando grande nobreza e generosidade para com o, agora seu amigo Príncipe Flá, “atirou” para cima da mesa uma ideia, uma ideia tão louca que era muito bem capaz de funcionar: já que ele não tinha conseguido transformar o Príncipe num homem viril e másculo, porque não tentar o contrário, o Príncipe tentar ensinar-lhe a ele a como se comportar como uma jovem mulher?
A finalidade da ideia era Flota passar-se por mulher só o tempo necessário para que o casamento se realizasse e assim salvar a vida de Flutêncio e ao mesmo tempo tornar o Príncipe Flá em Rei, uma vez coroado ninguém, nem mesmo o Rei Flaput, poderia fazer nada contra o Príncipe.
Agradecendo o gesto e nada tendo a perder em pelo menos tentar, o Príncipe Flá aceitou a sugestão do amigo e pouco tempo depois as aulas para transformar o enorme Flota numa delicada “donzela” tiveram início.
Foi mandado fazer um vestido de noiva com as medidas de Flota.

Preparados, ou não, o dia do casamento tinha chegado…

O Castelo estava todo enfeitado com milhares de bandeiras ostentando as cores oficias do Reino da Flilândia – laranja, branco e azul, lá dentro decorria, perante centenas de súbditos, a cerimónia matrimonial.
O Príncipe Flá e Flota – este envergando um lindo mas enorme vestido de noiva e com o rosto coberto por um véu, estavam de mãos dadas no altar perante o Bispo do Reino, os Reis olhavam, desde o trono, com um ar enternecido para o Príncipe Flá, tudo parecia correr bem, ninguém desconfiava de nada.
A certa altura o Bispo fez a tradicional pergunta: “Se alguém tiver alguma coisa a dizer contra a realização deste casamento que fale agora ou então que se cale para sempre.”, ninguém a abriu a boca.
O Bispo preparava-se para continuar com a cerimónia quando a voz de alguém se fez ouvir, era a voz do Príncipe Flé.
“Eu… eu tenho uma coisa a dizer contra este casamento!”, disse ele enquanto o sábio Flop o ajudava a sair da cadeira onde estava sentado.
O burburinho foi imediato, o Rei Flaput ordenou silêncio aos súbditos e exigiu céleres explicações ao Príncipe Flé.
O “minúsculo” Príncipe, com um sorriso maquiavélico estampado no rosto e com os olhos carregados de cinismo aproximou-se do Flota, ordenou que ele se curvasse e depois destapou-lhe o rosto.
A multidão deu um grito de admiração em uníssono quando o rosto de Flota foi revelado.
“Senhor meu Pai, Rei soberano do nosso belo Reino da Flilândia, tenho o desgosto de Vos informar que o Vosso filho primogénito é… é… Senhor, a palavra exacta ainda não foi inventada mas digo-Vos que ele é um admirador… um grande admirador de pessoas do mesmo sexo. Sim, Vossa Alteza, o Vosso filho traíu-Vos e traiu também a confiança do Vosso povo, este casamento não se pode realizar, como tal, e como está escrito a letras douradas no livro sagrado da nossa tradição, exijo aqui e agora, perante Vossa Senhoria ser coroado Rei.”, disse o Príncipe Flé.
O Rei Flaput olhou na direcção do sábio Flutêncio e perguntou-lhe se as bombásticas palavras do Príncipe Flé eram verdadeiras.
Flutêncio ajoelhou-se perante o Rei, implorou misericórdia para com o Príncipe Flá e autoproclamou-se o único culpado daquela situação.
Flota também se ajoelhou e demandou ser ele mesmo o castigado pois tinha falhado na missão de fazer o Príncipe Flá interessar-se por mulheres.
Comovido com os gestos dos amigos, o Príncipe Flá corajosamente disse que se alguém ali deveria ser castigado era ele uma vez que tinha quebrado uma tradição secular.
“Senhor meu Pai, porque não castigais os três infiéis? Escumalha como esta não é digna de pisar o mesmo chão que Vossa Senhoria.”, disse o Príncipe Flé, esfregando as suas ridiculamente pequenas mãos.
O Rei Flaput uma vez mais exigiu silêncio, ele levantou-se do trono, colocou as mãos atrás das costas e andou pensativamente de um lado para o outro, algum tempo depois ele voltou-se a sentar no trono e anunciou a sua decisão.
A maior parte das pessoas ficou estupefacta uma vez que o Rei Flaput deu mais importância ao facto do Príncipe Flá ter amigos, amigos leais que estavam dispostos a sacrificarem-se por ele, do que ao facto do Príncipe ser um... um… um grande apreciador de pessoas do mesmo sexo.
“Senhor meu Pai, de certo brincais… exijo ser coroado Rei.”, disse revoltado o Príncipe Flé, enquanto se colocava em bicos de pé para parecer mais ameaçador.
O Rei Flaput olhou-o nos olhos e perguntou-lhe onde estavam os amigos do Príncipe, aqueles que o apoiavam desinteressadamente, sem responder, o Príncipe Flé baixou a cabeça, parecendo ainda mais pequeno do que aquilo que ele já era.
“Para ser respeitado é preciso saber respeitar.”, advertiu o Rei Flaput.

O destino de cada um ficou logo ali, naquele dia, traçado:
O Príncipe Flá, apesar de não ter casado, foi coroado Rei.

Flota foi nomeado "Primeiro-ministro da Flilândia".
O sábio Flutêncio pôde finalmente gozar as suas merecidas férias e partiu para parte incerta.
O sábio Flop – responsável pelo crescimento físico e intelectual do Príncipe Flé, foi despedido, como castigo, a partir daquele dia a palavra “Flop” passou a ser sinónimo de fracasso… ainda hoje isso assim é.
O Príncipe Flé apresentou-se “voluntariamente” para exercer o cargo de “técnico oficial de limpeza alheia” – passou a limpar as casas de banho públicas do Reino.

Milhares de mudanças de céu depois o, então Rei Flá, adoptou um bebe do sexo masculino, garantindo dessa maneira a continuação da família real.

Nunca se soube ao certo se o Rei Flá encontrou ou não, o amor da sua vida, esse é um episódio ainda incerto nesta história e na verdade isso nem é importante, importante é lembrar e relembrar as sábias palavras do Rei Flaput, palavras que mais que nunca, hoje, devem ser ouvidas: “Para ser respeitado é preciso saber respeitar.”


FIM