O sujeito aparentava ter cerca de 25 anos de idade, a sua estatura física deveria ser média para os padrões actuais, no entanto, não posso precisar com exactidão esse facto uma vez que ele estava sentado, calculei o seu peso corporal como sendo mais ou menos o suposto para um indivíduo com estas características físicas.
Educadamente cumprimentei-o e sentei-me à sua frente.
O comboio não estava lotado, tinha até alguns lugares desocupados, para ser mais preciso, digo que o comboio estava quase vazio, tanto, que o silêncio que imperava na altura em que me sentei, apenas era quebrado pelo barulho da própria locomotiva em andamento… ou seria o velhinho lá atrás a ressonar?
O meu inesperado companheiro de jornada, julgo que para me tranquilizar, disse para eu não estranhar o facto de ele estar vestido daquela forma pouco usual.
Eu sorri, sempre educadamente, e disse-lhe que já não estranhava nada na vida, não, desde o dia em que vi o jogo da Final de um Campeonato do Mundo de futebol onde um jogador, mais especificamente o capitão de uma das equipas, desferiu uma selvática cabeçada no peito de um dos oponentes, esse inqualificável gesto valeu-lhe a óbvia expulsão do jogo, que por sinal era o último da sua carreira professional, no entanto esse mesmo jogador foi, no dia seguinte ao ataque, eleito o Melhor Jogador desse mesmo Campeonato, desde esse dia eu deixei de estranhar o que quer que fosse.
Acho que o tipo vestido de noivo não deve de ter visto esse jogo, pois começou imediatamente a contar-me a razão porque estava ele assim vestido.
Isto foi o que ele me contou:
“Pois é, amigo, aqui vou eu, a caminho do meu casamento, e nem sei ainda se vou encontrar a mulher da minha vida… a mulher da minha vida, nem imagina o tempo que eu perdi até me aperceber disso.
Às vezes parece tão difícil ver o óbvio, não é?
Olhe, faz exactamente hoje um ano e três dias que tudo aconteceu… esse dia ficou gravado na minha memória como uma música está gravada num CD, percebe? É impossível de apagar.
É, há coisas que um homem não esquece facilmente… como aquele dia… bem, na realidade foi uma noite, claro, tinha de ser de noite… aquela parecia ser mais uma noite, igual a tantas outras, dizem que a noite é a melhor companhia dos solitários e desafortunados… o que se passa é que naquela altura eu estava desempregado, desempregado e sem grandes expectativas de encontrar um emprego decente, por isso refugiei-me na noite.
Foi uma época amarga da minha vida, eu vivia num minúsculo quarto, alugado na zona mais degradante desta cidade, as condições eram francamente más, mas aquilo era tudo que eu podia ter na altura.
Aquela noite… bom, aquela noite não fugiu à regra, e às 22 horas, pontualmente, lá estava eu, sentado religiosamente ao balcão de um qualquer bar desta cruel cidade, a tentar afogar as minhas mágoas em incontáveis cocktails, uns atrás dos outros… uns atrás dos outros.
Já deviam ser umas 2 da manhã quando… ou então, eram apenas 23 horas, não sei, eu estava tão bêbado que, no dia seguinte, quando finalmente acordei e recuperei alguns dos meus sentidos, me interroguei se o que tinha acontecido na véspera, tinha de facto acontecido, ou teria, apenas, sido tudo fruto da minha alcoolizada imaginação.”
O tipo fez uma pausa, sacou de um cigarro e acendeu-o, eu, educadamente, disse-lhe que era proibido fumar naquela carruagem, ele, acho que meio a brincar, disse-me que se eu lhe deixasse fumar aquele cigarro até ao fim, me contaria o que lhe aconteceu naquela noite… a viagem até Paris era longa e enfadonha, abri ligeiramente a janela e sentei-me novamente, o indivíduo disse então:
"Amigo, imagine agora este cenário: a mulher perfeita!
Pense, pense por alguns instantes no seu ideal de beleza feminino, tente visualizar o corpo dela, o cabelo, cor dos olhos, a boca, a voz... até a voz, se conseguir... aposto que consegue.
Pois agora eu garanto-lhe que vi essa mesma mulher naquela noite, quero dizer, vi o meu ideal de mulher naquela noite.
Meu Deus... sim, Deus, foi precisamente a partir do momento em que a vi que voltei a acreditar em Deus, e na sua existência... ela... ela era a perfeição em pessoa.
Bom, mas naquela manhã eu estava demasiado confuso, lembrava-me somente de alguns pormenores, como o facto de ter sido ela a vir ter comigo, de termos falado durante algum tempo, do nome dela ser Cristina e... lembrava-me do mais estranho: um inesperado pedido que ela me fez, na verdade acho que não foi bem um pedido, acho que foi mais um desafio, ela desafiou-me a... bom, ela desafiou-me a ter relações sexuais com ela dentro do meu carro... lamentavelmente a obstinação, ou sei lá, tara, da Cristina por meios de transporte, revelou-se uma enorme desilusão para mim, uma vez que naquela altura eu ainda não tinha a carta de condução, quanto mais um carro.
É verdade, meu caro, eu tinha perdido a oportunidade, talvez única, de fazer amor com o meu sonho... de qualquer das formas, nessa manhã, tomei a natural decisão de voltar ao mesmo bar, onde tudo tinha, pensava eu, acontecido.”
O tipo pousou o cigarro e levantou-se para tirar o casaco, eu disse-lhe, ainda que de forma naturalmente educada, que aquela história me parecia difícil de acreditar, o fulano sentou-se e pegou novamente no cigarro, ele disse-me que entendia a minha perplexidade mas depois continuou:
“E lá fui eu… devo-lhe confessar que antes de sair de casa, pus uma dose extra de perfume, sabe, apesar do que algumas pessoas dizem, a verdade é que a maioria das mulheres prefere que o “cheiro a cavalo” se mantenha, apenas e só, nesse animal… mas como lhe dizia, lá fui eu ao bar, carregado de perfume e esperança em encontrar novamente aquele anjo em forma de mulher.
Entrei no bar e sentei-me, sentei-me precisamente no mesmo sítio da noite anterior, pedi uma bebida sem álcool e esperei… fiquei ali, durante horas, sentado naquele mesmo banco, quase como se ele fosse sagrado… infelizmente a Cristina não apareceu nessa noite, nem nessa noite nem nas três seguintes.
São coisas assim, como esta, que fazem com que um homem deixe de acreditar em Deus, como vê, caro amigo, a minha fé é do tipo iô-iô, vai e vem… e passados uns dias ela veio novamente.
Quando a Cristina apareceu lá no bar eu fiquei siderado, ela era ainda mais bonita do que aquilo que eu me lembrava, e o melhor de tudo é que ela se lembrava de mim.
Conversamos durante algum tempo sobre coisas banais, depois não resisti e perguntei se ela se recordava da “proposta” que me tinha feito na primeira noite em que nos vimos.
Ela não disse nada, aqueles breves segundos de silêncio pareceram-me dias, quando recomecei a falar ela interrompeu-me, por detrás de um sorriso ela perguntou se eu já tinha resolvido o meu problema, ela estava a referir-se ao facto de eu não ter carro, entende? Claro que eu ainda não tinha carro, mas não ia ser um pormenor como esse que me iria impedir de ter aquela mulher nos meus braços, eu era capaz de vender a minha alma ao Diabo se fosse preciso, mas nessa noite eu tinha de arranjar um carro, desse por onde desse, por isso disse-lhe que sim, que já tinha resolvido o meu problema, só que… só que a Cristina insistiu em ver a minha carta de condução, fez questão disso, não tive hipótese, sem carta não havia carro e sem carro não havia Cristina.
Ela apenas disse: “Que pena.”, pouco depois a Cristina saiu do bar e eu fiquei ali sozinho, rogando pragas a Deus por Ele não ter enviado um sinal qualquer a avisar que deveria ter tirado a carta quando fiz 18 anos, senti-me abandonado pela fé e pela sorte.
Contudo, quando saí do bar, vi uma coisa que me fez pedir imediatamente perdão a Deus, por ter duvidado da sua benevolência.”
O tipo deu a última passa no cigarro e atirou a ponta pela janela, entretanto, sem que eu tivesse dado conta, o velhinho que estava a ressonar quando eu entrei no comboio, estava agora sentado ao meu lado, parecendo verdadeiramente interessado na história do “noivo”, eu olhei para o homem e cumprimentei-o educadamente, o velho não foi nada educado, não me respondeu sequer, ele apenas pediu ao outro fulano para continuar a historia, este não se fez rogado e disse:
“Uma escola de condução, senhores, eu vi uma escola de condução, ali, mesmo ao lado do bar.
Entendi aquela aparente coincidência como sendo um sinal divino… sei lá, uma espécie de rebuçado dado pelo Senhor, talvez para tentar compensar o facto de Ele se ter esquecido de me avisar, que era suposto eu já ter tirado a carta, não sei… fosse o que fosse, a verdade é que no dia seguinte fui-me matricular naquela escola.
Sabem, o dinheiro que tive obrigatoriamente de pagar pela inscrição fez-me pensar, pensar se tudo aquilo valeria realmente a pena, percebem? Que raio, um homem tem de ser mais do que um animal em cio permanente, um “buscador” incessante de prazer carnal… será que só conseguimos alcançar a felicidade através do sexo? Mesmo que essa felicidade seja, em alguns casos, de breves minutos?
Naquela altura eu pensava que sim, sem qualquer dúvida que sim, por isso ter vendido o anel de família, para arranjar dinheiro suficiente para pagar a carta, não foi assim tão doloroso.
Bom, depois de eu passar a desagradável fase das aulas teóricas, comecei, finalmente, a ter aulas práticas, o meu instrutor era uma pessoa absolutamente normal, tanto, que só na segunda aula é que olhei verdadeiramente para ele, e vi que era uma mulher… não que ela fosse feia, ou se parecesse com um homem, não, nada disso, até pelo contrário, o problema é que eu estava enfeitiçado pela Cristina e só tinha olhos para ela.
À noite, quando ocasionalmente encontrava a Cristina no bar, ela vinha ter comigo e perguntava-me sempre a mesma coisa; se eu já tinha resolvido o meu problema… claro, eu dizia-lhe que estava a tratar do assunto, então ela afastava-se e ia ter com outro homem, e depois outro e outro… eu não percebia aquela sua atitude, mas mais tarde vim a descobrir tudo…”
O mal-educado do velhote interrompeu o tipo, chamando em voz alta prostituta à Cristina, isso fez com que uma mulher, que estava sentada num banco próximo ao nosso se insurgisse contra o velho, dizendo que ele estava a acusar uma pessoa sem provas.
Gerou-se, a meu ver, um burburinho muito desagradável, por isso pedi calma, depois convidei a jovem senhora, que por sinal era bastante bonita, a sentar-se junto de nós para ouvir o restante da história, ela, muito educadamente acedeu ao meu convite e apresentou-se com o nome de Márcia.
Depois de ela se sentar, precisamente à minha frente, e apesar do velho não parar de resmungar, o “noivo” continuou dizendo:
“Os dias foram passando, à medida que as aulas de condução iam avançando, eu começava a sentir uma estranha ansiedade, dava por mim especado na escola de condução horas antes do início das aulas, às vezes eu ia até lá e nem sequer tinha aulas… associei essa ansiedade, ao meu desejo de finalmente… desculpe, menina, mas tenho de ser franco, eu associei essa ansiedade ao meu desejo de finalmente poder possuir a Cristina.
Claro, é claro que tinha de ser por isso, só poderia ser por isso, que outro motivo haveria? Com certeza que não era por causa da Joana, a minha instrutora, uma mulher simples, ainda por cima divorciada e com um filho pequeno… o Pedrinho, não, não podia ser por causa dela.
Sabem, durante as aulas eu nunca contei à Joana, o verdadeiro motivo de eu querer tirar a carta de condução, na verdade eu nem me lembrava disso quando estava com ela… nós falávamos de outras coisas, falávamos dos lugares onde gostávamos de ir, dos filmes que vimos, dos livros que lemos, das músicas que ouvimos, dos sonhos… dos sonhos desfeitos, da esperança no futuro, falávamos dos nossos medos e alegrias… enfim, se os meus olhos não mentirem, acho que vocês já devem ter notado que eu me apaixonei por ela.”
Desta vez, quem interrompeu o tipo, foi a Márcia, ela achou aquela parte da história muito querida, e fez questão de o dizer.
Estranhamente, para mim, o velhote foi educado e concordou com a Márcia.
Devo ser sincero, eu não ouvi aquela parte da história com muita atenção, os meus pensamentos estavam demasiado ocupados com a Márcia… pensamentos educados, entenda-se.
O “noivo” retirou de um bolso do casaco a carteira e mostrou-nos uma fotografia da Joana, a tal instrutora, depois disse:
“Estava a chover, estava a chover, quando o dia da última aula chegou… enchi-me de uma coragem que não sabia sequer ter, e contei tudo à Joana, tudo.
Disse-lhe o motivo de eu querer tirar a carta e falei-lhe na Cristina… sabem o que ela me disse? Nem vão acreditar.
A Joana conhecia a Cristina.
Segundo o que a Joana me contou, a Cristina era apenas uma vítima, uma vítima do próprio marido, o dono da escola de condução. O bandido montou um esquema para ter mais alunos, obrigando a Cristina a seduzir homens que não tinham carta de condução… como foi o meu caso.
Entretanto, algum tempo depois, eu soube que a Cristina não aguentou mais aquela situação e pediu o divórcio, ela foi inclusivamente, denunciar o marido à polícia… nunca mais soube nada dela.
Bom, mas voltando à minha última aula de condução, depois da Joana me contar tudo aquilo, eu fiquei… sem palavras, literalmente.
Mas, também, para que são precisas palavras quando estamos apaixonados, e os nossos olhos falam por nós? Foi isso que aconteceu… beijámo-nos.”
Tive de ser eu a interromper o tipo, para oferecer um lenço de papel à Márcia, que estava visivelmente emocionada, até o velhote estava, mas a esse eu não ofereci nada.
Por fim, o “noivo” contou que estava a caminho de Paris, mais concretamente, a caminho da Euro Disney, local para onde a Joana tinha ido passear com o filho Pedro, para lhes fazer uma surpresa e pedir a mão de Joana em casamento.
Agora que recordo esta minha viagem a Paris, não posso deixar de pensar em como a vida é irónica e cheia de coincidências… é que agora chegou a minha vez de ir vestido de noivo, e aqui vou eu, a caminho do meu próprio casamento, cheio de vaidade e orgulho, por me ir casar com a mulher mais deslumbrante deste mundo, a Cristina.
FIM
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