13/04/05

O Bilhete



Tudo tem direito a uma história, a deste bilhete é mais ou menos esta:

Assim que eu soube que os U2 viriam tocar a Portugal, nesse mesmo instante ficou bem claro na minha mente que eu teria de arranjar um bilhete para os ver, normalmente é a minha mente que manda no “resto” de mim por isso enfiei-me dentro do carro e parti rumo à bomba de gasolina.

PEQUENA NOTA DE ESCLARECIMENTO PARA EVENTUAIS VISITANTES DE OUTROS PAÍSES: Portugal é um país maravilhoso, temos bastante sol e feriados durante praticamente o ano inteiro e temos outras particularidades como o facto de se venderem bilhetes para concertos de música nas nossas bombas de gasolina.

Bom... e lá fui eu, quando cheguei à bomba e apesar de ter chegado lá bastante cedo (mais precisamente um dia antes da data prevista para o começo da venda dos bilhetes), constatei que muitas, mas mesmo muitas outras pessoas tinham tido a mesma ideia que eu.

Como não podia fazer mais nada meti-me na fila, na enorme fila de carros e esperei pacientemente pela minha vez.
Recordo-me perfeitamente que essa noite estava particularmente fria, diria até gelada, infelizmente isso é tudo o que me lembro dessa noite porque as temperaturas negativas que se fizeram sentir durante (toda) a madrugada foram insuportáveis e eu acabei por desmaiar.
No dia seguinte acordei com o barulho de alguém a bater no vidro do meu carro, era a policia, resultado: fui multado por mau estacionamento, eu bem que tentei explicar que o facto de eu estar ali parado no meio da via se devia ao facto de ter adormecido enquanto esperava pela minha vez para comprar um bilhete na bomba de gasolina mas acho que os polícias devem ter pensado que eu estava bêbado e multaram-me na mesma.
Desgraçadamente isso não foi o pior que me sucedeu naquela manhã, o pior foi ter sido informado, por um alegre funcionário da bomba de gasolina, que os bilhetes já tinham esgotado.
Frustrado, triste, sentindo-me injustiçado, ferido, amargurado e com uma multa para pagar fui para casa.

Já em casa e depois de derramar algumas (muitas) legitimas lágrimas de desilusão, resolvi concentrar as poucas forças que restavam dentro de mim na esperança, ainda que remota, de arranjar um bilhete para o concerto através desse grande e útil meio de pirataria universal que é a Internet.
Depois de uma breve mas muito elucidativa passagem por alguns sites de leilões, fiquei com a firme certeza que jamais iria ter nas minhas mãos o tão desejado ingresso (nota: eu gosto dos U2, muito mesmo, mas não o suficiente para pagar 500 euros por um bilhete).
A seguir àquela consulta fui possuído por um qualquer espírito demoníaco que me fez sentir uma enorme e incontrolável vontade de insultar alguém.
Instintivamente os meus dedos começaram a teclar na barra de endereços o único local onde eu poderia fazer isso sem ter medo de sofrer represálias físicas: uma sala de chat.

Entrei na sala de chat e escolhi um nick que fosse elucidativo do meu estado de espírito - "Satanás" pareceu-me bem.
Ao princípio a coisa correu tal como eu esperava, consegui pôr todos que estavam na sala de chat contra mim e o que é ainda melhor: todos contra todos.
Passado algum tempo eu já me começava a sentir melhor (nada como um bom desabafo/insulto), quando me preparava para desligar o computador surge alguém no chat a querer "falar" comigo em particular, eu pensei que fosse mais uma pessoa a querer dizer mal da minha mãe mas enganei-me redondamente, foi precisamente o oposto... resumindo: ela (sim, era uma ela) foi muito simpática e maravilha das maravilhas tinha um bilhete para o concerto dos U2, o mais incrível é que ela estava disposta a oferecê-lo à minha pessoa (em troca de um pequeno favor, como mais tarde vim a saber)... como ela morava relativamente perto de mim combinámos um encontro em casa dela... e lá fui.

Apesar das noites frias, os dias naquela altura estavam bastante quentes e secos por isso resolvi ir ter com a Jane (nick que ela usou) de mota.
Ela vivia no centro da cidade, mais precisamente no prédio ao lado do principal hotel da cidade, estacionei a mota junto a um táxi e subi.
Ora bem, nesta parte eu poderia mentir e dizer que a Jane era uma "brasa" mas a verdade é que ela era já... digamos, algo "madura".
Ela convidou-me para entrar.
Enquanto bebíamos qualquer coisa ela foi-me contando que a vida dela se tinha tornado monótona devido à rotina, ela estava casada há 20 anos, tinha abandonado o emprego para ficar em casa e tomar conta dos filhos que entretanto nasceram e queixou-se que o marido raramente tinha tempo para sair com ela devido ao trabalho.
É aqui que os bilhetes para o concerto dos U2 entram, acontece que o marido dela trabalhava no sítio onde eles eram feitos.
Não me considero um génio mas modestamente vi logo no que aquilo ia dar, por isso peguei no capacete e preparei-me para sair.
Ela agarrou-me no braço e pediu encarecidamente para eu ficar mais um pouco.

Jane assegurou-me que aquilo que pretendia não era sexo mas apenas um pouco de excitação na vida.
Fiquei a saber que o conceito "apenas um pouco de excitação na vida" para ela consistia em realizar uma performance de strip-tease diante de um desconhecido, sendo que o desconhecido em questão era eu.
Após alguma hesitação deixei o meu coração falar mais alto, pensei que se Deus me tinha dado o poder de fazer alguém feliz eu não o poderia negar, além disso eu estava desesperado.
A única condição que impus foi a de ver o bilhete primeiro, Jane concordou e foi busca-lo, seguidamente ela pousou o bilhete em cima de um móvel perto da janela e pouco tempo depois deu inicio à sessão de strip.
Jane apesar de não ser propriamente a Pamela Anderson não estava nada mal, aliás, de cada vez que ela tirava uma peça de roupa eu ficava com mais calor, tanto que tive de abrir a janela para refrescar o "ambiente".
Erro meu... naquele instante o bilhete voou pela janela fora só parando em cima do tejadilho do táxi que estava estacionado junto do hotel.
Entrei em pânico e saí do apartamento da Jane a correr o mais rápido que consegui, quando cheguei à rua o táxi estava a começar a arrancar, apesar de eu me ter esquecido do capacete no apartamento da Jane resolvi pôr-me em cima da minha mota e partir em perseguição do táxi.
(nota: só mais tarde vim a descobrir que o bilhete se tinha aguentado em cima do táxi graças à extraordinária capacidade de colar da merda de pombo)

Nunca imaginei que um táxi conseguisse andar tão depressa, parecia que o motorista ignorava propositadamente os meus berros de desespero pedindo para que ele parasse… quem não ignorou aquela algazarra, mais o facto de eu conduzir sem capacete, foi a policia.
A dada altura comecei a ouvir sirenes, olhei para trás e vi um carro patrulha a fazer sinais para eu encostar, nestas alturas o que é que o mais comum dos mortais deve fazer? Pois... eu fiz o contrário.
Felizmente consegui despistar os chuis mas isso teve um preço: perdi o táxi de vista.
Resolvi então parar em cima de um viaduto para pensar um pouco, aclarar as ideias, tentar saber se tudo aquilo valia realmente a pena... não cheguei a nenhuma conclusão porque vi (por incrível que possa parecer) o tal táxi com o bilhete a passar por baixo do viaduto.
Numa manobra radical desci com a mota por uma ravina e saltei em seguida por cima da barreira que impede as pessoas normais de entrarem na auto-estrada sem pagar.
Uma vez mais eu estava no encalço do táxi e desta vez nada nem ninguém me iria impedir de atingir o meu objectivo.
O táxi parecia dirigir-se na direcção do aeroporto.
(nota: subitamente um mau pensamento veio à minha mente: eu estava sem travões... é que afinal eu não tinha conseguido saltar por cima da barreira à primeira tentativa)

Quem circula na via pública com viaturas em mau estado, nomeadamente com falta de travões, arrisca-se a sofrer na pele as consequências, foi precisamente isso que me sucedeu… quando o táxi parou no aeroporto... eu não parei.
Choquei na traseira do táxi e fui projectado uns 10 metros (na verdade foram 2) pelo ar, quando “aterrei” bati com a cabeça em alguma coisa muito dura, conclui que foi no chão, é certo que fiquei algo atordoado mas vi com clareza, com uma estranha clareza, uma pessoa a sair do táxi e a correr na minha direcção, essa pessoa era nem mais nem menos que o Bono Vox.
(nota: o facto de ter batido (violentamente) com a cabeça no chão não invalida que eu tenha visto realmente o Bono)

O homem foi muito simpático, primeiro perguntou se eu estava bem e depois tirou do bolso uma nota de 100 dólares que deu ao motorista do táxi para pagar os estragos que eu tinha feito no carro.
O táxi regressou à cidade.
O que aconteceu comigo depois é quase inacreditável: Bono convidou-me para beber qualquer coisa com ele no bar do aeroporto enquanto não chegava a hora do seu voo.
No bar, Bono contou-me que tinha vindo a Portugal para tirar umas fotografias promocionais do novo cd.
Eu estava extasiado, ali, sentado à minha frente estava o autor e intérprete de algumas das minhas músicas preferidas, eu já quase me tinha esquecido do bilhete quando Bono, talvez pensando que eu tinha feito aquela louca perseguição ao táxi por causa dele, tirou da carteira um bilhete para o concerto e ofereceu-mo, ele disse-me que era para recompensar o meu esforço e dedicação à banda.
No meu melhor inglês disse-lhe: “…”, é verdade, não consegui dizer nada (em qualquer língua), porém um brilho cintilante nos meus olhos demonstrava que aquele tinha sido um dos momentos mais felizes da minha vida.
Entretanto a hora do voo do Bono tinha chegado e ele partiu, eu fiquei ainda mais 1 hora no bar a olhar para o bilhete e a pensar que se alguma vez eu contasse a história deste bilhete a alguém, ninguém iria acreditar em mim.

“O que aconteceu ao outro bilhete?” – bem, muito provavelmente e se bem conheço alguns motoristas de táxi deste país, ainda deve andar a circular pelas nossas estradas um táxi com um bilhete para o concerto dos U2 colado no tejadilho com merda de pombo… fiquem atentos.

FIM