23/06/05

A Mão

SÁBADO
DIA - INTERIOR – QUARTO

Heitor Ferraz (34 anos, arquitecto) veste uma t-shirt, Olga Martins (32 anos, arquitecta) está sentada na cama a mexer num computador portátil.

Heitor: Tens a certeza que não queres vir até à praia, querida? O dia está lindo.
Olga: Eu sei, amor... mas tenho de adiantar este projecto... vai tu e diverte-te por mim.
Heitor: Continuo a achar que trabalhas demais, hoje é sábado e deverias descansar mas tu é que sabes… se quiseres quando eu voltar dou-te uma ajuda.
Olga: Obrigado... agora vai senão perdes as melhores ondas.

Heitor aproxima-se de Olga, dá-lhe um beijo e sai do quarto.
Olga continua a mexer no computador até ouvir a porta da rua a bater, ela corre para a janela e vê Heitor a entrar para o Jipe.
Olga volta para o computador.

Monitor do Computador: Pronto... ele já foi surfar... podes vir!!

INTERIOR – JIPE DE HEITOR

Heitor olha para a praia.

Heitor (sozinho): Isto hoje está lotado, vai ser impossível surfar aqui... acho melhor procurar outro sitio.

Heitor procura qualquer coisa no porta-luvas do Jipe.

Heitor: Merda, esqueci-me do telemóvel em casa... que se lixe, não vou demorar muito.

INTERIOR – QUARTO

Olga e Jorge Magalhães (25 anos) estão deitados na cama.

Jorge: Já sabes quem foi o escolhido para ficar na firma?
Olga: Já te disse que só para a semana é vai ser escolhido o nome do estagiário que vai ficar a trabalhar nos escritórios... tem calma.
Jorge: É que eu preciso mesmo desse emprego... diz-me, achas que tenho o talento necessário?
Olga (a rir) : Talento para arquitecto ou para amante?
Jorge: Esclarece-me uma coisa, tu és realmente importante lá dentro, não és?! Espero não andar a "comer" a pessoa errada.
Olga: Parvo... se depender de mim vais ficar no gabinete ao lado do meu.
Jorge: Mas esse não é o do teu marido?
Olga: É... quer dizer, por enquanto é mas nunca se sabe o que pode acontecer no futuro.

Jorge debruça-se sobre Olga.

Jorge: Pois eu sei o que te vai acontecer agora...
Olga (a sorrir): O quê?

Jorge segreda qualquer coisa no ouvido de Olga, os dois riem-se e depois beijam-se ardentemente.

EXTERIOR – PRAIA

Heitor estaciona o Jipe e tira a prancha de surf.
A praia está quase deserta apenas se vêem dois jovens surfistas a conversar perto do mar, Heitor vai ter com eles.

Heitor: Boas, tudo bem? Este spot parece fantástico.
Jovem 1: Ya... hoje o mar tá gringo.
Jovem 2: Mas pra quem não conhece pode ser perigoso, especialmente pra quem já não é nenhum jovem.

Os jovens riem-se.

Heitor: Já vi tudo... vocês acham que o cota aqui não sabe surfar... é isso, bacanos?
Jovem 2: Bem...

Heitor afasta-se dos jovens e caminha na direcção do mar depois ele vira-se para os jovens.

Heitor: Os meninos são surfistas ou as pranchas é só para enfeitar? Vão ficar aí especados?

Jovens falam entre si enquanto Heitor espera.

Jovem 1: Vamos mostrar ao palhaço quem são os donos deste spot.
Jovem 2: Bora lá.

Os jovens juntam-se a Heitor e os três entram no mar.
Durante um bom bocado tudo corre bem mas inesperadamente Heitor é derrubado por uma enorme onda, embate com a cabeça na prancha e perde os sentidos.
Com alguma dificuldade os jovens conseguem tirar Heitor da água.

NOITE - INTERIOR – SALA

Olga pega no telefone e liga para Pedro Bastos (35 anos).

Olga (ao telefone): Pedro, sou eu, a Olga...
Pedro: Olá, Olga... tudo bem?
Olga: Comigo está mas estou preocupada com o Heitor, ele saiu cedo para ir surfar e ainda não voltou, o pior é que ele se esqueceu de levar o telemóvel.
Pedro: Ele foi surfar? Então o mais certo é que ele tenha perdido a noção das horas e esteja agora a conversar sobre surf com algum amigo. Não te preocupes...

Ouve-se motores de automóveis.

Olga: Parece que estou a ouvir o Jipe dele a chegar.
Pedro: Eu não disse? Olha, já agora diz-lhe para ele não se esquecer do jogo na quarta-feira.
Olga: Eu digo... obrigado e desculpa o incomodo, um beijo.
Pedro: Outro, até logo.

Olga desliga o telefone e senta-se no sofá.
Ouve-se a campainha da porta.

Olga (enquanto se levanta e caminha até à porta): Lindo serviço, esqueceste-te do telemóvel e das chaves de casa, só não te esqueces da cabeça porque ela está agarrada ao... corpo.

Olga fica surpreendida por ver do outro lado da porta dois polícias.

Policia 1: Boa noite, minha senhora, aquele Jipe é do seu marido, o senhor Heitor Ferraz?
Olga: Sim, é... o que se passa... o que aconteceu ao Heitor?
Policia 1: O senhor Heitor teve um acidente...
Olga: Acidente?!
Policia 1: Tente manter a calma.
Olga: Onde é que ele está, ele está bem?
Policia 2: O seu marido está no hospital, nós não sabemos de mais nada, apenas recebemos ordens para trazer a viatura até aqui e para levar a senhora até ao hospital, se quiser, claro.
Olga: Eu vou buscar a minha carteira.

INTERIOR - HOSPITAL - GABINETE DA DRª ELISABETE

Olga está sentada diante da Dr.ª Elisabete Silva (33 anos).

Doutora: ... e só vamos saber ao certo o que se passa com o seu marido quando tivermos nas mãos os resultados dos exames que mandámos fazer, neste momento o prognóstico é reservado...
Olga: Durante quanto tempo é que ele vai ficar em coma, Dr.ª Elisabete?
Doutora: Como já lhe disse é difícil prever o que pode acontecer nestes casos, o melhor é não especular, o Sr. Heitor é ainda jovem e isso é uma vantagem neste caso, temos de tentar ser optimistas.
Olga (cabisbaixa): Pois...

A Doutora levanta-se e vai confortar Olga.

Doutora: Ouça, eu sei que é difícil mas o melhor que a Olga tem a fazer é ir para casa e tentar descansar, nós temos o seu contacto e assim que houver alguma alteração no estado do seu marido nós imediatamente entrámos em contacto consigo.
Olga: Posso ver o Heitor... por favor?
Doutora: Está bem, vamos lá.

INTERIOR - HOSPITAL - QUARTO ONDE ESTÁ INTERNADO HEITOR

Olga: Dr.ª Elisabete, posso ficar um momento a sós com ele?
Doutora: Bem, pode... mas só por alguns instantes, eu fico no corredor à espera, não demore.
Olga: Obrigado.

A Doutora sai do quarto, Olga pega na mão direita do Heitor e fica a olhar para o rosto dele.
Ela sente que Heitor a está a apertar com a mão.

Olga (voz alta): Doutora...

A Doutora entra no quarto.

Doutora: O que aconteceu?!
Olga: Foi o Heitor, ele apertou a minha mão...
Doutora (enquanto põe a mão de Heitor debaixo do lençol): Olga, isso é impossível, talvez tenha imaginado, deve ser do stress... é melhor ir descansar… venha, eu acompanho-a até à saída.

A Doutora e Olga saem do quarto.
Um dedo da mão de Heitor mexe-se.

SEGUNDA-FEIRA

DIA - INTERIOR - CASA DE OLGA/HEITOR

Ouve-se a campainha da porta a tocar.
Olga, com cara de quem dormiu mal, abre a porta.
Quem está do outro lado é o Jorge que de imediato a abraça, os dois entram para a sala e sentam-se no sofá.

Jorge: Como é que o Heitor está?
Olga: Mal... quer dizer, eles ainda não sabem ao certo o que se passa, estão à espera dos resultados dos exames... mas ele está em coma... não sei o que fazer...
Jorge: O pessoal lá do escritório pediu-me para te dizer que eles estão contigo, eu só soube de tudo hoje de manhã...
Olga: Eu devia ter ido com ele... talvez as coisas tivessem sido diferentes.

Jorge abraça Olga.

Jorge: Não penses assim, estas coisas acontecem, tu não tens culpa de nada.

Olga limpa as lágrimas do rosto, Jorge fica a olhar fixamente para o chão.
Longa pausa.

Jorge (a olhar para o chão): Sabes...
Olga: O que foi... estás com uma cara tão esquisita... aconteceu alguma coisa?

Olga, com as mãos, vira o rosto do Jorge para a direcção dela.

Olga: Jorge, sabes que podes contar comigo... o que aconteceu... voltaste a jogar?

Jorge olha novamente para o chão.

Olga: Meu Deus, Jorge, tinhas prometido que ias deixar isso...

Jorge olha para a Olga.

Jorge: Eu sei, amor... mas não consegui parar... desta vez eles não me vão perdoar, deram-me uma semana para arranjar o dinheiro... se eu não pagar eles fazem-me a folha.
Olga: De quanto precisas?
Jorge (a olhar para o chão): 25 mil.
Olga (desiludida): Jorge...
Jorge: 25 mil esta semana, o resto vou ter de pagar...

Olga levanta-se rapidamente do sofá e vira as costas ao Jorge.

Olga: Eu não acredito nisto... como foste capaz de ser tão estúpido?

Jorge levanta-se e coloca as mãos nos ombros da Olga.

Jorge: Olga, querida... tenta entender, eu tinha um jogo quase perfeito nas mãos, aquilo ia ser a maior jogada da minha vida... eu, eu tive de arriscar, era tudo ou nada.

Ouve-se a campainha da porta.

Olga (enquanto vai abrir a porta): Pois... parece que foi o nada outra vez, não foi, Jorge? Quando é que vais crescer?

Jorge senta-se no sofá.
Olga abre a porta, do outro lado está o carteiro.

Carteiro: Bom dia, minha senhora, tenho aqui uma carta registada para um... senhor Heitor Ferraz.
Olga: Eu sou a esposa dele, pode-ma entregar.
Carteiro (enquanto entrega a carta): Assine aqui, por favor... obrigado e bom dia, minha senhora.

Olga fecha a porta, volta para a sala e fica em pé junto do sofá.
Ela abre e lê a carta.

Jorge (enquanto Olga lê a carta): Sabes, Olga, estive a pensar, vou vender o carro, é a única coisa com algum valor que tenho... sei lá, depois vejo como vou para o emprego, talvez comece a ir a pé... o emprego, ainda nem sei se lugar vai ser meu... eu sei que o carro não vai dar para pagar tudo mas é melhor que nada... querida, eu juro-te que se sair desta alhada com vida nunca mais pego num baralho de cartas, não quero acabar como o meu pai, tu sabes, ele está preso...

Olga senta-se no sofá.

Olga: Meu Deus!
Jorge: O que se passa? Eu já te tinha falado sobre o meu pai.
Olga: Não é isso.

Olga entrega a carta ao Jorge.
Jorge pega na carta e levanta-se, enquanto caminha à volta do sofá ele vai lendo algumas partes da carta em voz alta.

Jorge: Exmº. Sr. Heitor Ferraz, lamentámos ter de o informar do falecimento do Dr. Sebastião Ferraz... o funeral será realizado quarta-feira... por vontade expressa em testamento, o Dr. Sebastião Ferraz nomeou o Sr. Heitor Ferraz como seu legítimo herdeiro ... solicitámos a sua presença nos nossos escritórios o mais breve possível... o valor estimado que irá receber é de...

Jorge pára de andar, faz uma pausa e volta a ler a carta.

Jorge (pausadamente): Um milhão, cento e trinta e sete mil, quinhentos e vinte e quarto euros e onze...

Jorge senta-se desamparadamente no sofá.

Jorge: Cêntimos.

Pausa.

Jorge: Uau, isto é muito dinheiro!

Jorge volta a olhar para a carta.

Jorge: Quem é este tal Sebastião... o pai do Heitor?!

Olga com o olhar fixo no chão, não responde.

Jorge (toca no ombro da Olga): Olga.
Olga (estremecida): O quê... o que foi?!
Jorge: Este fulano da carta... é o pai do Heitor?
Olga: Não... os pais dele já morreram há algum tempo... pelo menos foi o que ele me disse... eu... eu estou muito confusa neste momento...
Jorge: Sabes o que esta carta significa? Significa que tu estás milionária... ou melhor, tu estás multi-milionária, tu...
Olga: Importas-te de te calar por um momento? Eu não estou nada, ok, Jorge? Quem herdou isso foi o Heitor, não eu.
Jorge: Sim, mas tu estás casada com ele...
Olga: Casada com separação de bens... sabes o que isso quer dizer? Eu não tenho direito a nada, só se o Heitor...
Jorge: Morresse?

Durante alguns instantes Olga e Jorge olham-se em silêncio.
Olga levanta-se do sofá, caminha até ao bar da sala e prepara uma bebida.
Jorge olha novamente para a carta, depois ele levanta-se e com a carta na mão aproxima-se da Olga.

Jorge: Este dinheiro...

Olga interrompe bruscamente.

Olga: Dinheiro... dinheiro... é só nisso que és capaz de pensar neste momento?! Então e eu, eu não conto para nada? Achas que tudo isto é fácil de suportar? Bolas, eu tenho o marido deitado numa cama de hospital neste momento e... e nem sei se ele vai sobreviver e tu só pensas e falas em dinheiro?
Jorge: O que é que tu queres? Claro que penso no dinheiro, a minha vida depende dele... e eu não estou aqui para te apoiar? Não fui eu que te dei a atenção e o carinho quando tu precisaste? Pensei que gostavas verdadeiramente de mim mas parece que me enganei... podes ficar com o dinheiro, eu arranjo-me sozinho...

Jorge atira a carta para cima do sofá e sai da rapidamente da casa.
Olga começa a chorar.
Instantes depois ouve-se a campainha da porta, Olga abre a porta, quem está do outro lado é o Jorge.

Jorge: Desculpa, amor... fui um estúpido... perdoa-me.

Olga e Jorge abraçam-se, depois, ainda abraçados, caminham até à sala e sentam-se no sofá.

Jorge: Tu tens razão, Olga, foste apanhada por tudo isto como se tivesses sido atropelada por um comboio, mas ouve, quero que saibas que eu vou estar sempre do teu lado para te ajudar a ultrapassar estes obstáculos, eu...

Ouve-se o telefone a tocar, Olga levanta-se do sofá e vai atender.

Olga (ao telefone): Sim, sou eu... claro... está bem, até logo.

Olga pousa o auscultador e vira-se para o Jorge.

Olga: Era do hospital, eles já têm os resultados dos exames do Heitor, pediram-me para ir lá.
Jorge: Queres que vá contigo?
Olga: Não... prefiro ir sozinha, obrigada.

Jorge levanta-se e abraça-a.

INTERIOR - HOSPITAL - GABINETE DA DRª ELISABETE

Olga bate à porta.

Doutora: Sim... pode entrar.

Olga entra no gabinete.

Doutora: Olá, D.Olga, sente-se, por favor.
Olga (enquanto se senta): Obrigado, mas trate-me só por Olga, devemos ter mais ou menos a mesma idade.
Doutora: Tem razão.
Olga: E então, Doutora Elisabete... como está o meu marido?
Doutora: Sinceramente nem nós conseguimos saber ao certo, o seu marido revela sintomas extraordinários... diria mesmo incompreensíveis para a actual ciência...
Olga: Sintomas extraordinários?!
Doutora: Extraordinários, realmente... o seu marido apesar de estar em coma parece conseguir ouvir...
Olga: Não estou a perceber... ele consegue ouvir? Como a Doutora pode ter a certeza disso se ele está em coma?
Doutora: Foi o próprio Heitor que confirmou isso...
Olga: Ele também consegue falar?
Doutora: Não... mas consegue mover a mão direita ao ponto de... conseguir escrever.
Olga: O quê?!

A Doutora abre uma gaveta da secretária, retira um papel e entrega-o à Olga.

Doutora: Tome, veja com os seus próprios olhos.

Olga pega na folha.

Olga: Meu Deus... isto é mesmo a letra do Heitor...e... e ele escreveu o meu nome e a morada da nossa rua... não sei o que dizer...
Doutora: O seu marido parece estar de alguma forma consciente, a preocupação em escrever a morada demonstra isso mesmo. Eu falei com um médico meu amigo que me disse já ter presenciado um caso semelhante mas...

Olga pousa a folha em cima da secretária.

Olga: Mas...?
Doutora: Posso falar abertamente consigo?
Olga: Por favor...
Doutora: Bem, esse médico chegou à conclusão que no caso que ele presenciou o paciente mantinha-se em contacto com a realidade através dos olhos das pessoas que ele conhecia... familiares, amigos, colegas de trabalho...tudo aquilo que eles viam ele via também.
Olga: Isso é assustador... o que aconteceu a esse paciente?

Pausa.

Doutora: Não sei ao certo mas... parece que ele se suicidou, um dia a enfermeira chegou ao quarto e encontrou o tubo da respiração artificial cortado.

O telemóvel da Olga toca, ela assusta-se com o toque.
Olga abre nervosamente a sua carteira e procura o telemóvel lá dentro, assim que o encontra ele deixa de tocar.

Olga (irritada): Merda.
Doutora: A Olga parece muito nervosa... o que é natural, não quer que eu mande vir um café ou outra coisa qualquer?
Olga (enquanto volta a por o telemóvel na carteira): Não.
Doutora: A sério, não é incómodo nenhum, eu...
Olga: Eu já disse que não quero tomar coisa nenhuma... será que posso ver o meu marido?
Doutora (levanta-se): Sim, claro... eu acompanho-a.
Olga (levanta-se rapidamente): Deixe-se estar, não é preciso, ele está no mesmo quarto?
Doutora: Sim, está mas...
Olga: Eu sei onde é... com licença.

Olga sai do gabinete.

Doutora (enquanto se senta): Coitada... passou-se.

INTERIOR - HOSPITAL - QUARTO ONDE ESTÁ INTERNADO HEITOR

Olga entra no quarto, aproxima-se da cama onde o Heitor está deitado e pega na mão direita dele.

Olga: Heitor... sou eu, a Olga... consegues ouvir-me?

Ela fica a olhar para a mão dele à espera de uma reacção.

Olga: É claro que não consegues, tu estás em coma, é impossível...

Subitamente, Olga sente que Heitor a está a apertar com a mão, ela assusta-se e larga a mão dele.

Olga: Meu Deus! Então é mesmo verdade... tu consegues ouvir.

A mão de Heitor abre-se ligeiramente como se estivesse a convidar a Olga para a segurar.
Olga aproxima-se mas receosamente não pega na mão dele.

Olga: Heitor... aconteceram tantas coisas e tão depressa que eu... eu nem sei o que é melhor... eu amo-te mas...

Uma Enfermeira entra no quarto.

Enfermeira: Desculpe mas a senhora vai ter de sair.

Olga olha uma vez mais para o Heitor e sai logo em seguida do quarto, a Enfermeira sai também.
A mão de Heitor fecha-se firmemente.

NOITE - INTERIOR – RESTAURANTE

Olga e Jorge estão a jantar.

Jorge: ... então ele consegue usar a mão para escrever?
Olga: Não é a mão que me preocupa... o que me preocupa foi aquilo que a tipa disse sobre o Heitor conseguir ver tudo o que se passa através dos meus olhos...
Jorge: Talvez ele só consiga ver e não ouça nada daquilo que estamos a dizer...
Olga: Não gozes.
Jorge: Eu não acredito em nada disso... são tretas de quem não tem competência para saber o que se passa realmente.... como eles são uns incompetentes atiram essas coisas ridículas para o ar.
Olga: Mas eu vi o que ele escreveu... e senti que ele me ouviu... isso é verdade.

Pausa.

Jorge: Dizes que o Heitor consegue escrever e ouvir... certo?

Olga abana afirmativamente com a cabeça.

Jorge: Isso dá-me uma ideia... que tal o Heitor assinar uma declaração em como te dá todos os poderes para usares os bens dele como muito bem entenderes... com a herança incluída, que tal?
Olga: Não... nem pensar numa coisa dessas... eu não seria capaz disso...

O telemóvel do Jorge toca, ele atende.

Jorge (ao telemóvel): Sim... sou eu... sim... eu sei... eu sei... foda-se, eu já disse que sei disso... podem dizer ao Sr. Castro que na data combinada ele vai receber a merda do dinheiro... obrigadinho por me lembrarem.

Jorge, irritado, atira o telemóvel para cima da mesa.

Olga: Está tudo bem?

Jorge baixa a cabeça, inclina-se sobre a mesa e segura a cabeça com as mãos.

Jorge: O que é que achas?! Eram os cobradores... eles não estão a brincar, se eu não arranjar a porcaria do dinheiro... eles...
Olga: Jorge... sobre aquilo da declaração...

Jorge ergue imediatamente o rosto.

Jorge: Conheço um tipo que trabalha no Notário... amanhã ou depois temos a declaração nas nossas mãos.

Jorge pega nas mãos da Olga.

Jorge: Obrigado, és um verdadeiro anjo.

QUARTA-FEIRA
DIA - INTERIOR - HOSPITAL - GABINETE DA DRª ELISABETE

Olga bate à porta.

Doutora (sentada na secretária): Sim... pode entrar.

Olga entra e vai cumprimentar a Doutora que lhe estende a mão.

Doutora: Olá, Olga... sente-se, por favor.
Olga (senta-se): Obrigado, Doutora. Bem, em primeiro lugar queria-lhe pedir desculpas.
Doutora: Ora essa, porquê?
Olga: Porque da última vez que cá estive não fui correcta com a Doutora.
Doutora: Não se preocupe com isso, a Olga está a passar um mau bocado.
Olga: De qualquer das formas queria pedir-lhe desculpa por ter sido tão bruta... a Doutora não tem culpa daquilo que está a acontecer.
Doutora: Vamos esquecer isso, combinado?
Olga: Obrigado... diga-me, em relação ao Heitor, tem novidades?
Doutora: Infelizmente não, ele continua no mesmo estado.

Olga dá um suspiro.

Doutora: Contudo, depois da Olga ter saído o Heitor voltou a escrever qualquer coisa.
Olga (intrigada): Ai sim, o quê?!

A Doutora retira de uma gaveta da secretária uma folha e entrega-a à Olga.
Olga olha para a folha e fica confusa.

Olga: Mas... o que é que está escrito aqui?! Não percebo nada, é a letra do Heitor mas...
Doutora: A sério que não percebe?
Olga: Isto está escrito em que língua... a Doutora consegue perceber?
Doutora (hesitante): Não... também não percebo... talvez nem seja nada, talvez sejam apenas letras juntas sem nenhum sentido.
Olga: É estranho... Doutora, queria pedir-lhe um favor.
Doutora: Sim... pode dizer.
Olga: Queria-lhe pedir para não voltar a dar nada ao Heitor onde ele possa escrever...
Doutora: Mas, Olga, essa é a única forma que ele tem de comunicar.
Olga: Eu sei mas peço-lhe esse favor, pelo menos por enquanto.
Doutora: Bem...
Olga: Por favor... eu tenho as minhas razões...
Doutora: Está bem, vou dar essas instruções à enfermeira.
Olga: Muito obrigada... agradeço-lhe imenso... só mais uma coisa... era possível eu ver o Heitor agora?
Doutora: Sim, claro... quer que a acompanhe?
Olga (enquanto se levanta): Não, muito obrigada... já lhe roubei muito tempo... até à próxima, se houver alguma alteração no estado do Heitor avise-me por favor.
Doutora (levanta-se e estende a mão à Olga): Pode ficar descansada.
Olga: Adeus.

Olga sai do gabinete, a Doutora fica a olhar intrigadamente para aquilo que o Heitor escreveu na folha de papel.

INTERIOR - HOSPITAL - QUARTO ONDE ESTÁ INTERNADO HEITOR

Olga entra no quarto, antes de fechar a porta ela certifica-se de que ninguém está no corredor.
Depois de fechar a porta, Olga olha durante alguns instantes para o corpo estático de Heitor.

Olga (a sussurrar): Vamos lá.

Ela aproxima-se da cama, inclina-se sobre o Heitor e fala-lhe suavemente ao ouvido.

Olga: Heitor... sou eu, a Olga... consegues ouvir-me?

Olga pega na mão dele e fica a aguardar uma reacção, ele não reage.

Olga (emocionada): Eu... eu não sei o que fazer... sinto-me tão fraca, insegura... abandonada... eu... quase preferia estar no teu lugar agora...

Heitor aperta firmemente a mão dela.
Olga sente um "arrepio na espinha" mas continua a falar.

Olga: Amor... porque é que isto aconteceu? Porquê? Parece que o Mundo desabou em cima de mim... são tantas coisas ao mesmo tempo... tantas coisas... agora é que eu reconheço o teu valor... eras tu que tratavas de tudo... meu Deus a falta que tu me estás a fazer...

Olga limpa as lágrimas.

Olga (a sorrir nervosamente): Até para pagar as contas eu preciso de ti, imagina... sou mesmo uma inútil, não é? A propósito, a tua médica disse-me que tu consegues escrever... se conseguisses, eu precisava que tu assinasses um cheque... estou a precisar de algum dinheiro para pagar as despesas e como a conta está no teu nome... espera um pouco.

Ela abre a sua carteira e tira de lá a Declaração e uma caneta.

Olga: Querido, toma a caneta... por favor, faz um esforço e assina o teu nome.

Olga coloca a Declaração debaixo da mão do Heitor.
Ela olha com expectativa para a mão dele.

Olga: Vá lá, querido... ajuda-me a ajudar-te.

Depois de alguns instantes a mão de Heitor move-se e escreve qualquer coisa.
Olga fica extremamente ansiosa e expectante.
A dado momento a mão de Heitor pára de escrever, a caneta cai no chão.
Olga ignora a caneta e rapidamente pega na Declaração.

Olga (quando vê o que Heitor escreveu): Meu Deus...

Na Declaração, Heitor escreveu: EU SEI DE TUDO.

Assustada e nervosa, Olga recua uns passos e sem querer derruba uns frascos de vidro.

Olga (a olhar para o Heitor): Não... isto não é possível...

A Doutora Elisabete entra bruscamente no quarto.

Doutora: O que aconteceu aqui? Eu ouvi o barulho de vidros partidos... Olga, você está bem?

Olga olha para a Doutora e sai rapidamente do quarto sem lhe dizer nada.
A Doutora olha para os vidros no chão, ela vê a caneta no chão perto da cama e apanha-a.

Doutora: O que será que aconteceu aqui?

A mão do Heitor toca intencionalmente na Doutora, ela vira-se para ele.

EXTERIOR – CARRO DA OLGA

Olga, enquanto conduz, pega no telemóvel e liga para o Jorge.

Olga (impaciente); Vamos, Jorge… atende… o que é que tu estás a fazer?

INTERIOR – CASA DO JORGE – SALA

O telemóvel do Jorge, em cima da mesa, deixa de tocar.
Jorge está em pé diante de Freitas e Cardoso (dois cobradores profissionais).
Freitas dá um valente soco na cara do Jorge fazendo com que ele caia sentado no sofá.
Freitas senta-se ao lado do Jorge, Cardoso “passeia” pela sala apreciando com atenção a decoração.

Freitas: Que tal, sr.Jorge… eu tinha ou não tinha razão? Uma pessoa sentada pensa muito melhor.

Jorge, assustado e a sangrar da boca, permanece em silêncio.

Freitas (virando-se para o Cardoso): Cardoso, porque não te sentas também?
Cardoso: Eh páh, Freitas… ainda teimas com essa treta?
Freitas: Cardoso, isto não é treta nenhuma, páh... está cientificamente provado que uma pessoa pensa melhor se estiver sentada.
Cardoso: Valha-me Deus.
Freitas (vira-se para o Jorge): Sr.Jorge, ouça… veja lá se eu não tenho razão… se uma pessoa estiver sentada o cérebro está mais propicio a chegar a conclusões acertadas do que se a pessoa estiver em pé… e porquê? Eu explico-lhe porquê… porque se estiver em pé uma parte do cérebro tem de estar ocupada com a coisa do equilíbrio e isso, parecendo que não, ocupa desnecessariamente uma boa parte de neurónios que deveriam estar a ser usados para outra coisa. Está a perceber o que eu quero dizer, sr.Jorge?
Cardoso: Teorias, Freitas… teorias… e olha, eu também tenho uma teoria que deita por terra a tua.
Freitas: Páh, Cardoso… queres partilhá-la com a malta?
Cardoso: Ok, ela envolve aqui o sr.Jorge… segundo a tua teoria uma pessoa sentada pensa melhor, pensa com mais clareza, chega a melhores conclusões, certo?
Freitas: Obviamente.
Cardoso: Pois… mas aqui o nosso amigo Jorge estava sentado na altura em que decidiu continuar a apostar quando ele deveria era ter parado… no caso dele, estar sentado apenas complicou mais a coisa…
Freitas: Alto lá… espera aí… mas ele muito provavelmente quando tomou a decisão de jogar estaria em pé, logo, estar sentado e continuar a apostar foi uma mera consequência da decisão que ele tomou quando ainda estava em pé.
Cardoso: De qualquer das formas foi uma má decisão, sr.Jorge… uma péssima decisão… o senhor está em maus lençóis, sabia?
Freitas: Ouça, Jorge… em consideração ao seu pai…
Cardoso: Um velho conhecido nosso.
Freitas: Nós vamos ser… como hei-de dizer? Cardoso…
Cardoso: Sei lá… tu é que estás sentado, o meu cérebro está ocupado a tentar equilibrar-me.
Freitas: Porra páh… bem, sr.Jorge, nós vamos ser benevolentes. Vamos dar-lhe uma semana extra para arranjar o dinheiro.
Cardoso: Repare, sr.Jorge, nós só fazemos isto a pessoas especiais… pessoas com quem nós até simpatizámos… mas não tenha qualquer dúvida de que se o senhor não arranjar o dinheiro nós…
Freitas (enquanto se levanta): Nós iremos fazer-lhe outra visita, só que dessa vez ela não será tão agradável como esta… deixe-se estar sentado, nós sabemos onde é a saída… Cardoso, vamos?
Cardoso: Sim… sim… vamos. Sr.Jorge, parabéns pela decoração da sala, apreciei muito a simbiose cosmopolita/minimalista, adeus.

Assim que Freitas e Cardoso saem, Jorge levanta-se, pega no telemóvel e liga para a Olga.

Olga (dentro do carro, ao telemóvel): Sim…
Jorge (ao telemóvel): Olga… precisámos falar.
Olga: Eu ainda há pouco tentei ligar-te para…
Jorge: Sim, eu sei… não pude atender… estava ocupado… onde estás agora?
Olga: Estou a chegar a casa…
Jorge: Posso ir até aí?
Olga: Claro… aconteceu alguma coisa?
Jorge: Depois falámos… até já.

INTERIOR – CASA DA OLGA

Ouve-se a campainha da porta, Olga abre a porta e vê o Jorge com os lábios inchados.


Olga: Meu Deus! O que te aconteceu?
Jorge: Fui agredido… posso entrar?
Olga: Entra… mas o que aconteceu?

Os dois vão até à sala e sentam-se no sofá.

Jorge: O que aconteceu? Bem, eu estava em casa a trabalhar quando ouvi a campainha da porta, fui abrir e levei logo um soco na barriga, assim, sem mais nem menos.
Olga: Poça… e quem era o tipo?
Jorge: Não era só um, eram quatro…eles trabalham para o gajo a quem eu devo o dinheiro…
Olga: Meu Deus.
Jorge: Eu ainda me tentei defender mas eles estavam em vantagem… os cabrões deram-me pontapés no corpo todo…
Olga: Bandidos.
Jorge: E tu… tiveste sorte… o Heitor assinou a Declaração?

Silêncio.

Jorge: Olga…

Sem dizer nada, Olga levanta-se e vai à carteira buscar a Declaração, depois de a entregar ao Jorge, Olga senta-se no sofá.

Jorge (ao ver o que o Heitor escreveu): O que significa isto?
Olga: Significa isso que aí está escrito.
Jorge: O quê?!
Olga: Ele sabe de tudo, sabe de nós, da herança… de tudo.
Jorge: Foda-se.

Silêncio.
Jorge fica durante alguns instantes a olhar para o que Heitor escreveu.

Jorge: Bem… eu não queria acreditar que isso fosse possível mas agora só há uma coisa a fazer.
Olga: Uma coisa a fazer… o que queres dizer com isso?
Jorge: Olga… ouve… se ele sabe dos nossos planos o que é que achas que ele vai fazer se um dia sair do estado em que está?
Olga: Não… não pensei nisso ainda.
Jorge: Pois eu já… em primeiro lugar ele vai querer o divórcio e em seguida vai à policia…
Olga: Divórcio?
Jorge: Temos de ser objectivos neste momento… e tu tens de tomar uma decisão… queres continuar a viver na angústia do Heitor um dia sair de coma e esperar pelo que ele vai fazer, ou…
Olga: Ou…
Jorge: Ou queres deixar que eu trate de tudo para que tu vivas uma vida livre e despreocupada?
Olga: Por acaso não estás a sugerir que…
Jorge: Eu não estou a sugerir nada… apenas estou a colocar as duas únicas hipóteses que tens neste momento… a decisão é tua.

Silêncio.

Jorge: Anda cá.

Jorge abraça a Olga e depois olha-a nos olhos.

Jorge: Querida, aceita uma coisa: a tua vida mudou. Eu acredito que tenhas gostado em tempos do Heitor e entendo que a decisão que tens de tomar não seja fácil mas quero que saibas de uma coisa… bolas, eu nunca disse isto antes a uma mulher… eu, eu amo-te… amo-te como nunca
julguei ser possível amar uma mulher e vou estar sempre mas mesmo sempre ao teu lado.

Eles abraçam-se.
Jorge volta a olhar nos olhos da Olga.

Jorge: Amor, queres mais tempo para pensar… reflectir sobre aquilo que queres fa…
Olga (interrompe-o): Não… não é necessário mais tempo… eu já tomei uma decisão.

Pausa.

Jorge: E então… o que decidiste?

Pausa.

Olga: Faz o que tens a fazer.

NOITE - INTERIOR - HOSPITAL - QUARTO ONDE ESTÁ INTERNADO HEITOR

A Enfermeira entra bruscamente no quarto.
A Doutora dá um pequeno grito de susto.

Enfermeira: Desculpe se a assustei mas pensei que a Doutora já tinha ido para casa.
Doutora: Eu vim só ver se estava tudo bem com este paciente...
Enfermeira (enquanto se aproxima da cama): Estranho... a Doutora mexeu no paciente?
Doutora: Eu?! Não... claro que não... porque pergunta isso?
Enfermeira: Devo estar a fazer confusão mas parece-me que ele estava deitado de outra forma.
Doutora: Olhe, porque não vai verificar se está tudo bem com o paciente do 33? Eu ainda vou ficar aqui mais um pouco... não se preocupe que eu depois apago a luz.
Enfermeira: A Doutora é que sabe, veja se também vai descansar, já é muito tarde... até amanhã.
Doutora: Até amanhã.

Quando a Enfermeira sai do quarto, a Doutora senta-se imediatamente numa cadeira junto da cama.

SEXTA-FEIRA
DIA – EXTERIOR – ESPLANADA PERTO DA PRAIA

Jorge, sentado sozinho numa mesa da esplanada bebe um sumo de ananás.
Freitas e Cardoso aproximam-se e sentam-se na mesma mesa.

Freitas: Sr.Jorge, como está? Escolheu um péssimo local para o nosso encontro, o meu colega não suporta muito bem o sol e o calor.
Cardoso: Realmente o Freitas tem razão, eu detesto o calor, por isso vamos ao que interessa. O que se passa? Qual a razão da sua insistência ontem à noite para a marcação deste encontro?
Freitas: Certamente o senhor ainda não conseguiu arranjar todo o dinheiro que deve.

Antes de Jorge ter tempo de falar, o Empregado da esplanada aproxima-se da mesa.

Empregado: Olá, os senhores vão tomar alguma coisa?
Freitas: Eu quero uma cerveja preta gelada.
Cardoso: Eu não quero nada… espere, traga-me um sumo de… o que é que o sr.Jorge está a beber?
Jorge: Um sumo de ananás.
Cardoso: Traga-me um sumo de laranja… num copo alto… com uma pedra de gelo… e uma palhinha… azul.
Empregado: Palhinhas azuis não sei se temos.
Cardoso: Páh, nesse caso traga uma palhinha qualquer, não sou esquisito.

O Empregado afasta-se.

Freitas: Sr.Jorge, pode começar.
Jorge: Muito bem, na verdade eu ainda não tenho o dinheiro… não tenho mas vou ter… esse e muito mais, eu…
Freitas: Amigo Jorge, eu e o Cardoso somos profissionais, sabe a quantidade de vezes que já ouvimos essa desculpa?
Cardoso: E também não se deu ao trabalho de nos chamar até aqui só para dizer isso, pois não? O que o senhor pretende realmente de nós?
Jorge: Vejo que os senhores são inteligentes… vou ser directo: tenho uma proposta a fazer-lhes.
Freitas: Uma proposta… que tipo de proposta?
Jorge: Uma proposta, digamos, de trabalho.

O Empregado da esplanada chega com as bebidas e pousa-as em cima da mesa.

Empregado: Afinal sempre temos palhinhas azuis, senhor.

Cardoso pega na palhinha azul e mete-a no bolso da camisa onde já estão muitas outras palhinhas de várias cores, o Empregado fica admirado.

Cardoso (olhando para o Empregado): Há algum problema?
Empregado: Não… não, nenhum… com licença.

O Empregado afasta-se.

Cardoso: Continue sr.Jorge, que proposta é que nos quer fazer?
Jorge: Os senhores sabem que estou metido num grande sarilho… eu… eu juro-vos que tentei lutar com todas as minhas forças contra as minhas fraquezas mas… bem, suponho que o velho ditado: quem sai aos seus não degenera, sempre seja verdadeiro. Não consigo explicar mas existe sempre algo, alguma coisa, que me atrai para o lado errado… até já gastei muito dinheiro em psicanálises mas nada deu resultado, eu…
Freitas: Desculpe interromper, mas não nos estará a confundir? Nós não somos propriamente padres, isso mais parece uma confissão.
Cardoso: Homem, diga de uma vez por todas o que quer de nós. O sol está a dar cabo de mim.
Jorge: Eu… eu quero mudar, mudar de vida.
Cardoso: Continuamos sem perceber.
Jorge: Um último golpe.
Freitas: Como?!
Jorge: O derradeiro golpe… aquele que me irá deixar definitivamente milionário… mas preciso da vossa ajuda para o conseguir. Prometo que serão muito bem recompensados…
Freitas: Você deve de estar a brincar… Jorge Magalhães, 25 anos de idade, o seu pai está preso, a sua mãe fugiu com os seus irmãos para a Madeira, você vive numa casa alugada, tem um carro em segunda mão, o modo como conseguiu as notas na Faculdade é no mínimo discutível, você está agora a estagiar numa empresa graças aos “favores” que faz a uma mulher casada… caro Jorge, quem é que você quer enganar? Você não tem nada.
Jorge: Tudo isso é verdade mas se eu vos disser que caso o meu plano resulte vou ficar com a capacidade para vos pagar quatro vezes mais do que aquilo que o Castro vos paga agora… será que assim estarão interessados em me ouvir?
Freitas: Bem… quatro vezes mais?
Cardoso (enquanto levanta o braço para chamar a atenção do Empregado): Empregado! Faça o favor de me trazer outro sumo, pode ser de ananás e … surpreenda-me, traga uma palhinha da cor que você quiser.

MADRUGADA – INTERIOR – HOSPITAL – QUARTO ONDE ESTÁ INTERNADO HEITOR

Freitas e Cardoso entram sorrateiramente no quarto.

Cardoso: Tens a certeza que é este quarto?
Freitas: Tenho páh, lembro-me perfeitamente que o Jorge disse que era o quarto 32.

Cardoso acende a luz do quarto, eles olham para o Heitor deitado na cama.

Cardoso: Coitado, tenho até pena do homem… tão novo.
Freitas: É… são coisas que acontecem.
Cardoso: A vida percorre caminhos muito misteriosos… repara: nós estamos aqui para por termo a uma vida que no fundo já não o é.
Freitas: Explica…
Cardoso: É páh, já não é uma vida no verdadeiro sentido da palavra, esta máquina é a única coisa que ainda o prende ao nosso mundo.
Freitas: Bom, é melhor não perder-mos mais tempo.
Cardoso: Tens razão… sabes como se desliga esta coisa? Isto tem algum ON/OFF?
Freitas: ON/OFF?! Pelo amor de Deus, páh… afasta-te, eu trato disso.

Freitas tira do bolso um canivete e aproxima a lâmina do tubo de respiração artificial ligado ao Heitor.
Subitamente entram no quarto três polícias comandados pelo Agente Dinis Coimbra (54 anos).
Os polícias apontam as armas na direcção do Freitas e Cardoso.

Agente Coimbra: Policia! Parem imediatamente, vocês os dois estão presos.

Freitas e Cardoso, de costas voltadas para os polícias, olham um para o outro.

Freitas: Parece que fomos apanhados, caro colega.
Agente Coimbra: Ponham os vossos braços atrás da cabeça e virem-se lentamente.
Cardoso (para o Freitas): Sentes-te com sorte?
Freitas: Olha à tua volta, o que é que achas?!
Agente Coimbra: Não façam nenhuma loucura, entreguem-se... vocês não têm hipótese. Ponham os braços atrás da cabeça e virem-se lentamente... é o último aviso.
Cardoso (começa a cantar):There's a lady who's sure all that glitters is gold...And she's buying a stairway to heaven.
Freitas (junta-se ao colega e também começa a cantar):When she gets there she knows, if the stores are all closed ...

Os polícias olham incrédulos.

Agente Um (para o Agente Coimbra): Coimbra, o que fazemos?
Cardoso e Freitas (cantam juntos):With a word she can get what she came for....Ooh, ooh, and she's buying a stairway to heaven.

Freitas faz um sinal com os olhos ao Cardoso e os dois viram-se rapidamente para os polícias.
Freitas atira o canivete contra um polícia atingindo-o num braço, Cardoso tenta pegar na sua arma, os polícias disparam, Freitas e Cardoso caem sem vida no chão do quarto.
O Agente Coimbra aproxima-se dos corpos de Freitas e Cardoso, baixa-se e verifica se eles estão mortos.
A Doutora entra no quarto, juntamente com mais duas enfermeiras, elas correm para junto dos dois corpos caídos no chão.

Agente Coimbra: Não vale a pena… tratem antes do meu colega que foi ferido.

As duas enfermeiras vão ter com o polícia ferido, uma delas vai mais tarde verificar o estado do Heitor.
O Agente Coimbra levanta-se e guarda a arma.

Agente Coimbra (para a Doutora): Afinal sempre era verdade… tinhas razão.
Doutora: Eu não, pai… o Heitor.

Os dois aproximam-se da cama onde o Heitor está deitado.

Agente Coimbra: Pobre rapaz, deve estar a passar por um inferno.
Doutora: Obrigado por teres acreditado em mim, pai.
Agente Coimbra: Continuo sem perceber como é que ele sabia que isto ia acontecer… mas enfim, o importante é que tudo acabou.

Pausa.

Agente Coimbra: Que cara é essa, filha…tu sabes de mais alguma coisa?!

Um Agente, com um telemóvel na mão, aproxima-se dos dois.

Agente (entrega o telemóvel ao Agente Coimbra): Desculpe mas o Chefe quer falar consigo.
Agente Coimbra (para a Doutora): A nossa conversa ainda não acabou, minha menina... falamos já.
Agente Coimbra (para o Agente): Como é que está o Pacheco?
Agente: Vai ter de levar uns pontos no braço mas não é nada de grave.
Agente Coimbra (ao telemóvel): Sim... Chefe... sim... fomos obrigados a abater os tipos... claro, está tudo registado em vídeo... não, só o Pacheco é que teve um ligeiro ferimento no braço... diga?!

Agente Coimbra, enquanto fala ao telemóvel, faz um sinal para a Doutora e afasta-se dela, o Agente acompanha-o.
A Doutora olha para o Heitor e pega-lhe na mão.

SÁBADO
DIA - INTERIOR - CASA DO JORGE

Alguém bate à porta, Jorge deixa o lanche que estava a preparar na cozinha e vai abrir a porta.
Do outro lado da porta estão Castro Holmes (36 anos) e mais dois tipos enormes.

Jorge (surpreendido): Dr.Castro?!
Castro: Olá, Jorge... queria falar consigo, posso entrar?
Jorge: Sim... claro... entre.
Castro (para os dois tipos enormes): Vocês os dois ficam aqui fora à minha espera.

Jorge e Castro vão para a sala, Castro olha para a decoração.

Castro: O Cardoso tinha razão...
Jorge: Perdão?!
Castro: O Cardoso, o tipo que trabalha para mim, lembra-se?
Jorge: S-sim, o que tem?
Castro: Ele tinha-me dito que o Jorge tinha uma sala muito bonita e vejo agora que ele tinha razão... posso-me sentar?
Jorge: Sim... claro.

Os dois sentam-se.

Castro: Pois é, o Cardoso é um tipo sofisticadíssimo, ele percebe muito de arte, aliás, sempre que eu quero saber alguma informação sobre arte vou ter com ele... o Jorge gosta de arte?
Jorge: Quem... eu? Sim... claro, gosto muito.
Castro (com um sorriso nos lábios): Aposto que o Jorge deve de estar a pensar no que eu estou aqui a fazer, acertei?
Jorge: Bem, eu...
Castro: Sabe, eu queria-lhe propor um negócio... mas antes disso será que me arranjava qualquer coisa para beber? Isto é, se não for um grande incómodo para o Jorge.
Jorge (enquanto se levanta): Não... quer dizer, sim... eu vou à cozinha buscar... tem alguma preferência?
Castro: Um Porto agora ia saber-me muito bem.
Jorge: Claro, eu vou buscar, com licença.

Jorge vai à cozinha.
Ele pega em dois copos e mete-os debaixo do braço, depois agarra no telemóvel e marca um número.

Jorge (ao telemóvel, fala baixo): Olga… ele está aqui… o Castro, o tipo a quem eu devo o dinheiro… em minha casa, estou com medo do que me possa acontecer, ele veio com mais dois tipos enormes… eu acho que…

Sem que Jorge se aperceba Castro entra na cozinha.

Castro: Precisa de ajuda?

Surpreendido, Jorge deixa cair os copos no chão.

Castro: Assustei-o? Desculpe, Jorge, foi sem querer.

Jorge pousa o telemóvel e baixa-se para apanhar os vidros do chão.

Castro: Jorge, diga-me onde tem a garrafa que eu sirvo.
Jorge (enquanto apanha os vidros, aponta para uma prateleira): A garrafa está ali.

Castro pega na garrafa e enche dois copos.

Castro (enquanto enche os copos): Sabe, Jorge, eu adoro beber um bom Porto, há qualquer coisa no aroma que me faz transportar para outra dimensão… fico até mais calmo.

Sem que Jorge perceba, Castro tira do bolso da camisa um comprimido e mete-o dentro do copo do Jorge.

Castro (oferece o copo ao Jorge): Cá está o seu copinho… agora, vamos para a sala?
Jorge: Sim… vamos.

Com os copos na mão, os dois vão para a sala.

Castro: Se me permite, Jorge, antes de nos sentarmos queria propor um brinde.
Jorge: Um brinde?!
Castro: Sim, um brinde a si, a partir de hoje o Jorge vai, espero, começar uma nova vida.
Jorge: Desculpe mas não estou a perceber.
Castro (a sorrir): Não fique assim nervoso, vamos fazer o brinde e logo eu explico-lhe tudo.

Depois de brindarem e beberem, os dois sentam-se.

Castro: Hum... magnifico néctar. Agora vamos lá falar de negócios...
Jorge: Dr.Castro, antes de mais nada eu quero que o senhor saiba que...
Castro: Não me trate por senhor, faz-me sentir tão mais velho, sou apenas alguns anos mais velho que o Jorge.
Jorge: Desculpe...
Castro: Eu sei que o Jorge se tem esforçado para arranjar o dinheiro que me deve, era isso que ia dizer, não era? Eu sei que sim, estou a par de tudo.
Jorge: Está?!
Castro: Claro, como é que pensa que um homem como eu chegou onde chegou? Talvez o Jorge não saiba mas também eu nasci no seio de uma família modesta, tal como o Jorge. Sei bem das dificuldades que a vida apresenta mas como dizia a minha avô, viver não custa o que custa é saber viver. Modestamente é isso que tenho feito ao longo da minha vida, saber viver.

Nervoso, Jorge bebe mais um pouco de vinho.

Castro: Contei-lhe isto porque me identifico de certa maneira com o Jorge e é por isso que lhe quero propor uma coisa.
Jorge: Diga, Dr.Castro.
Castro: Queria que o Jorge viesse trabalhar para mim.

Pausa.

Jorge bebe o resto do vinho.

Jorge: Trabalhar para si?!
Castro (a sorrir): Sim, trabalhar para mim, garanto-lhe que não se vai arrepender, eu pago muito bem… e até podíamos esquecer a divida, que tal?
Jorge: Com licença.

Jorge levanta-se e abre a janela.

Castro: Sente-se bem?
Jorge: Sim mas subitamente fiquei cheio de calor.
Castro (a sorrir): Deve ser da excitação. Sente-se lá e ouça o que eu tenho para dizer.

Jorge a cambalear e com o rosto vermelho, senta-se.

Castro: Como lhe dizia, surgiu inesperadamente uma vaga na minha organização, se o Jorge aceitar a minha proposta vai ter tudo aquilo com que sempre sonhou, dinheiro, carros, casas… mulheres.

Jorge limpa o suor do rosto.

Castro: O trabalho só tem um pequeno senão.
Jorge: Qual?
Castro: Não é para trabalhar aqui.
Jorge: É noutra cidade?
Castro (a sorrir): É um pouco mais longe que isso.

Jorge levanta-se.

Jorge: Desculpe, eu não me sinto bem, não sei o que se passa comigo, parece que o meu coração vai explodir… eu vou…

Jorge cai no chão, Castro levanta-se calmamente e vai ter com ele.

Castro: Então, o Jorge não quer saber onde vai trabalhar?
Jorge: Ajude-me… preciso de ajuda…
Castro: O Jorge vai trabalhar para mim no Inferno e já agora, se vir por lá o Cardoso e o Freitas diga-lhes que quando eu puder passo por lá.

Jorge fica a contorcer-se de dores no chão.
Castro calmamente vai à cozinha buscar a garrafa de vinho do Porto e pega nos copos que tocou.

Castro: Jorge, não leve a mal mas tenho de ir trabalhar, eu ficava aqui a conversar mais um pouco mas já estou atrasado…

Castro sai da casa a beber mais um pouco de vinho.

Pouco depois…

Olga bate à porta do apartamento do Jorge.

Olga: Jorge… sou eu, abre… Jorge, estás bem?!

Depois de algumas tentativas, Olga retira da carteira umas chaves e abre a porta.

Olga (vê o Jorge deitado no chão): Meu Deus… Jorge.

Ela corre para ele, Jorge começa a deitar espuma pela boca.
Olga, desesperada, pega no telemóvel.

Olga (ao telemóvel): É do hospital?! Depressa, preciso de uma ambulância com urgência…

INTERIOR – HOSPITAL – GABINETE DA DRª ELISABETE.

Olga está sentada, com os cotovelos em cima da secretária ela segura a cabeça com as duas mãos.
A Doutora entra com um copo na mão.

Doutora (entrega o copo à Olga): Tome, Olga, beba isto… vai ficar mais calma.

Olga bebe um pouco, a Doutora senta-se em frente dela.

Doutora: Mais uma vez lamento a morte do seu amigo, o nosso médico especialista em casos de envenenamento fez tudo que era possível mas aquilo que ele tomou era letal. A Olga faz alguma ideia do porquê do suicídio?
Olga (muito nervosa): Suicídio?! O que é que você está a dizer? Ele não se suicidou ele foi assassinado.
Doutora: Meu Deus… isso é terrível.
Olga: O Jorge devia muito dinheiro a uma pessoa e… Doutora, a minha dor de cabeça parece que cada vez está mais forte…
Doutora: É natural, beba tudo que está no copo e tente ficar o mais calma possível.

Olga bebe o resto que estava no copo.

Doutora: Esta semana deve ter sido um inferno para a Olga, primeiro o acidente com o seu marido agora a morte do seu amigo…

Subitamente Heitor entra no gabinete.
Surpreendidas, Olga e a Doutora levantam-se.

Olga e Doutora (ao mesmo tempo): Heitor!

Olga corre para o Heitor e abraça-o com força.

Olga (emocionada): Amor… tu estás bem… nem imaginas o que a minha vida tem sido sem ti… sabe tão bem abraçar-te outra vez…

Heitor olha para a Doutora.

Olga (segura o rosto do Heitor com as mãos): Deixa-me olhar bem para ti, amor.
Heitor (friamente olha para a Olga): Afasta-te.
Olga: O quê?!
Heitor: Afasta-te de mim, eu não te conheço.
Olga: Mas…
Heitor: Eu pensava que te conhecia mas enganei-me, não te conheço… afasta-te de mim, já disse.

Bruscamente Heitor afasta a Olga e vai ter com a Doutora.

Heitor (a sussurrar ao ouvido da Doutora): Elisabete, eu tinha-te dito que não ia resistir…
Doutora: Tomaste o comprimido que te dei? Ainda estás fraco.
Heitor: Tomei, não te preocupes.
Olga (emocionada): Mas o que é que se está a passar aqui… não estou a perceber nada…
Heitor (para a Olga): É melhor que te sentes.
Olga: Heitor…
Heitor (irritado): Senta-te.

Olga e a Doutora sentam-se, Heitor fica em pé.

Heitor: Que desilusão, Olga… nunca pensei que fosses capaz.

Olga debruça-se sobre a secretária e segura a cabeça com as duas mãos.

Olga: Eu… eu não me sinto bem… estou…
Heitor: A traição não te chegava, não é? Lembras-te do dia em que vieste aqui com uma declaração para eu assinar, lembras-te? Desde esse dia que eu recuperei os sentidos… a minha própria mulher…

Heitor começa a suar bastante.

Heitor: Durante estes dias fingi estar em coma, só assim eu a Elisabete conseguimos apanhar os tipos que tu mandaste para me matar…
Olga: O que é que estás a dizer? Eu não sei de nada, foi o Jorge que…
Heitor: Cala-te! Chega de mentiras. Graças a Deus, enquanto eu estava de coma sabia de tudo o que se passava… cheguei mesmo a escrever tudo num papel, recordas-te da folha que a Elisabete te mostrou?

Heitor olha para a Doutora, ela retira da gaveta uma folha.

Heitor ao caminhar para ir buscar a folha tropeça sozinho e quase cai.

Doutora: Estás bem?

Heitor pega na folha.

Heitor (mostra a folha à Olga): Vês, Olga? Está tudo aqui, tudo até ao dia em que enviaste aqueles dois para me matar… mas como está escrito em Latim não percebeste nada, eu sabia que tu não irias perceber…

Heitor pousa a folha em cima da secretária.

Olga: Doutora… eu, eu não me sinto bem… estou a perder a visão… ajude-me.
Heitor: Chega, Olga, chega de mentiras. Era dinheiro que querias? Nunca vais ter nada meu, nunca.

Heitor faz uma pausa, ele põe a mão no peito.

Heitor: Podes até matar-me que mesmo assim não levas nada, assinei ontem uma declaração em como se alguma coisa me acontecer a Elisabete fica com tudo o que é meu.

Olga levanta-se.

Olga (quase a desfalecer): Eu… eu não aguento mais...preciso de…

Olga cai desamparada no chão.
Heitor com o rosto coberto de suor olha para a Doutora, ela permanece calmamente sentada a olhar para o relógio que tem no pulso.

Heitor: Elisabete, o que se passa com a Olga?

Heitor baixa-se e olha para o rosto da Olga.

Heitor (a arfar): Elisabete, o rosto dela está azul… porque não fazes nada?
Doutora (a olhar para o relógio): Porque estou à espera.
Heitor (quase a desfalecer): Mas… à… espera… de quê?

Heitor perde os sentidos e cai ao lado da Olga.

Doutora: À espera disso.

Calmamente, a Doutora levanta-se e anda à volta dos dois corpos.

Doutora (sozinha, emocionada): Foi terrível, pai… os dois não suportaram a emoção do reencontro… os corações cederam… é triste, muito triste… os corações que fizeram com que eles se apaixonassem um pelo outro, foram também os responsáveis pelas mortes de ambos… trágico, sem dúvida. O quê, pai? Não… não há necessidade de envolver a polícia nisto, eu mesma vou fazer as autópsias… é o mínimo que posso fazer por eles.

Ela caminha até à secretária, senta-se, respira fundo e marca um número no telefone.

Doutora (ao telefone, aflita): Doutor… é a colega Elisabete… preciso que venha com urgência ao meu gabinete… aconteceu uma tragédia…

Ela levanta-se, caminha até juntos dos corpos e ajoelha-se.
Pouco depois, batem à porta do gabinete.

Doutora: Entre, Doutor.

Quem abre a porta é Castro Holmes, ele entra e fecha a porta.

Castro (surpreendido): Doutora… o que aconteceu?
Doutora: Uma fatalidade, Dr.Castro, uma fatalidade.

Castro caminha até junto dos corpos e ajoelha-se em frente à Doutora.

Doutora (emocionada): Eles… eles sofreram dois ataques de coração simultâneos… já tentei tudo, não sei o que fazer…

Castro olha para os corpos.

Castro: Estranho… os sintomas parecem demonstrar outra coisa, parece… parece que eles foram envenenados.
Doutora: O quê?! Está louco?
Castro: Doutora, seja sincera comigo… o que aconteceu realmente?
Doutora (a chorar): Eu… eu matei-os.

Longa pausa.
Eles ficam a olhar um para o outro em silêncio.
Subitamente os dois desatam às gargalhadas, levantam-se e beijam-se ardentemente.

FIM

15/06/05

. . .

O mais normal, típico, clássico, usado e pouco original era começar esta história com um: "Era uma vez, há muito, muito tempo...", porém, esta história não vai, nem pode começar dessa forma pela simples e lógica razão que ela se passa numa altura em que as palavras ainda não tinham sido inventadas.
Quem reinava nesse tempo eram os sinais gramaticais, ou melhor, alguns sinais gramaticais, nomeadamente aqueles que no futuro iriam ser independentes das palavras, por isso e para facilitar (ou não) o enredo os próximos sinais gramaticais "independentes" que surgirem na narrativa não devem ser entendidos como sinais mas como "coisas" que outrora dominaram o Mundo.

Tudo começou quando o ! e a , um jovem casal de pontos tiveram 3 lindos filhos os ...
Apesar de à primeira vista os 3 irmãos parecerem iguais eles tinham uma particularidade que os distinguia o . era azul o . era verde e o . era vermelho
O . azul talvez por ter sido o primeiro a nascer era visto como uma espécie de líder pelos irmãos para onde quer que ele fosse os .. seguiam-no fielmente
Por ainda não existirem palavras escritas os ... viviam felizes e descontraidamente eles gostavam particularmente de ficar a ouvir durante horas a fio as aventuras contadas pelo avô ? normalmente ele contava episódios da vida de quando era ainda um jovem e possante ! os ... deliravam com as façanhas do avô ?
Durante a fase sempre difícil e problemática da adolescência os ... tiveram como amigos um engraçado : e uma jovem e cada vez mais sensual ;
Apesar de não querer admitir o . vermelho sempre teve uma paixão secreta pela ; ele corava imenso sempre que estava ao pé dela no entanto ; simpatizava mais com o . verde

O tempo foi passando e quem acabou por casar com a ; foi o : o resultado dessa união foi o nascimento daquele que seguramente iria ser o mais arrogante de todos os pontos gramaticais o .
Tal como gigantesca nuvem provocada por um incêndio o reinado dos sinais gramaticais "independentes" estava a ficar muito negro a razão disso foi o aparecimento das primeiras palavras elas começaram a surgir do nada e ao principio andavam soltas parecendo inocentes mas depois descobriram que poderiam ter mais importância se elas se juntassem umas às outras e foi assim que nasceram as primeiras frases
As frases já não satisfeitas por serem apenas uma junção de palavras começaram a ficar gananciosas

Elas começaram a caçar literalmente todos os sinais gramaticais e depois domesticavam-nos
Os ... assustados com a fúria das frases fugiram para o mais longe que conseguiram
As frases tornaram-se cada vez mais fortes e acabaram por dominar o Mundo
Não houve resistência possível os ? passaram a ser usados em frases quando se queria perguntar alguma coisa e os ! foram usados para dar ênfase a determinadas frases
Muito pior sorte tiveram as , elas foram as que mais sofreram nas mãos das frases as pobres , foram abusadas e eram obrigadas a ficar no meio de palavras sem sentido
O destino dos : e ; também não foi fácil no entanto muito anos mais tarde eles viriam a servir para uma coisa bem agradável a possibilidade de se fazerem bonecos nas salas de chat da Internet
O . tal como esperado tornou-se autoritário e snob tanto que não permitia que mais nada fosse escrito a seguir a ele

Passaram-se muitos anos até que finalmente os ... resolveram sair do esconderijo o tempo tinha tornado os outrora ... coloridos em ... monocromáticos
O Mundo estava tão diferente desde a última vez que os ... o tinham visto que eles sentiram-se deslocados e excluídos parecia que eles não faziam falta a ninguém nenhuma frase ou palavra queria ter os ... por perto
Eles foram até gozados pelos antigos amigos de infância o : e a ;
Os ... pareciam condenados ao esquecimento até que um dia uma palavra os decidiu ajudar essa palavra era o "enfim" ela achou que "enfim..." soava melhor e usou os ... pela primeira vez
Não tardou a que muitas outras palavras e frases começassem a usar os ... ainda não se sabe ao certo o porquê do uso dos ... porque no fundo eles não servem para nada mas isso não é importante o que é importante é que os ... ficam bem em qualquer lugar ...

FIM...