26/04/06

Grande Filme

Júlia Silva, 41 anos de idade, divorciada, mãe de uma filha, engenheira (não a filha, a Júlia).

Júlia foi ao cinema, para evitar uma coisa que ela detesta; as grandes confusões, ela resolveu ir à noite, numa quarta-feira, depois do jantar.
Assim que entrou na cinema, Júlia deu um enorme suspiro de alívio porque a sala estava praticamente vazia, as únicas pessoas que lá estavam dentro eram; um casal de jovens, sentados na primeira fila, e mais outras duas pessoas, uma sentada no extremo direito da sala e a outra no lado oposto.
Júlia subiu os degraus até à última fila, aquela que está mais distante do ecrã, e sentou-se na cadeira mais centrada em relação à sala possível, alguns instantes depois as luzes apagaram-se quase por completo, o filme estava prestes a começar.
Entretanto, um homem entrou, à pressa, na sala.
Como sempre, Júlia começou a fazer os exercícios mentais que sempre faz quando vê um filme, basicamente ela tenta convencer o cérebro que tudo aquilo que vai ver é real, à custa desta técnica ela já teve alguns problemas, nomeadamente uma vez atirou com o pacote de pipocas contra o ecrã quando o “mau da fita” deu um estalo ao “herói”.
Estava Júlia na fase final de concentração, quando o último tipo que tinha entrado na sala foi ter com ela.

- Desculpe, esse lugar é meu. – disse o sujeito.
- Boa noite. – respondeu a Júlia.
- A senhora não ouviu o que eu disse?
- Desculpe lá, estava a concentrar-me para ver o filme, precisa de ajuda?
- Sim, preciso que a senhora saia desse lugar.
- Como?!
- Esse lugar… é meu.
- É seu?!
- Sim, é meu. Está aqui no meu bilhete… fila A, lugar 13… vê?
- Ah, já percebi!
- Óptimo, agora importa-se? O filme já começou.
- Pode parar, eu já descobri que isto é para os apanhados… onde estão as câmaras?
- Quais câmaras?! A senhora está a gozar comigo?
- Calma aí… o senhor está a falar a sério?
- Claro que estou a falar a sério, a senhora vai demorar muito tempo a sair do meu lugar?
- Isto só a mim… vim eu ao cinema a esta hora, para não ter chatices, e aparece-me este…
- Como é?!
- Caro senhor, repare numa coisa muito simples: esta sala deve de ter umas 300 cadeiras, estão cá dentro 5 pessoas, sobram 295, porque raio é que não escolhe uma delas?
- Acha que me vou sentar no lugar de outra pessoa?
- Mas as cadeiras estão vazias, senhor, e de certeza que não vai entrar mais ninguém agora.
- Como pode ter tanta certeza disso? Além de tudo, eu sou uma pessoa que respeita os outros.
- Eu só gostava de saber qual é o mal de se sentar noutra cadeira, palavra de honra.
- Eu não vou insistir mais, se a senhora não sai, eu vou ter de ir chamar um funcionário.
- Isso, vá… vá e não volte.
- Grande cabra. – sussurrou o tipo enquanto saía da sala.
- Vocês acreditam neste palhaço? Com uma sala quase vazia, o tipo insiste em querer sentar-se no lugar marcado no bilhete. – disse a Júlia para as pessoas que estavam na sala.
- Ouça lá. – disse o homem do casal, que estava sentado na primeira fila. – Qual é o seu problema? Nós também estamos sentados no lugar marcado, porque é que acha que estamos sentados nestes lugares de merda? Daqui para conseguir ler as legendas tenho de olhar de um lado para o outro, como se estivesse numa partida de ténis.
- Mas ainda pior estou eu, estar encostado a esta parede não é nada agradável, acreditem. – queixou-se um dos tipos que estava sentado num dos cantos da sala.
- Idem, idem, eu aqui, deste ângulo, apenas consigo ver metade do ecrã. – disse o outro tipo, do outro lado da sala.
- Valha-me Deus! Mas se a sala estava vazia, porque é que vocês não escolheram um lugar melhor? – perguntou a Júlia.
- Porque este é o nosso lugar! – responderam todos em uníssono.
- Homens… - suspirou a Júlia, com um ar enfadonho. – A menina, ai em baixo, não tem nada para dizer? – perguntou ela, à mulher do casal, que estava sentado na primeira fila.

A mulher manteve-se em silêncio, nem sequer se virou para a Júlia.

- Fantástico, a união feminina nunca falha. Parece que estou sozinha nesta luta. – disse a Júlia.

Entretanto chegou o tipo que tinha saído da sala, um funcionário veio com ele, os dois foram ter com a Júlia.

- É esta, é esta a senhora que lhe falei. – disse o tipo, ao apontar para a Júlia.

O funcionário olhou para a Júlia, a Júlia olhou para o funcionário.

- Tu?! – questionaram-se os dois, ao mesmo tempo.
- Estou a ver que continuas a mesma casmurra, não é? – disse o funcionário, virado para a Júlia.
- E eu estou a ver que continuas o mesmo fracassado, não é? – respondeu-lhe ela.
- Só faltava esta… vocês conhecem-se? – perguntou o tipo que tinha ido chamar o funcionário.
- Infelizmente. – responderam ao mesmo tempo o funcionário e a Júlia.
- Tive o desprazer de estar casado, em tempos, com esta senhora. – disse o funcionário.
- Coitado… pela amostra, não deve de ter sido nada fácil viver com esta senhora…
- Alto lá. – interrompeu Júlia, olhando com ar de poucos amigos para o sujeito. – Como se atreve a fazer esse tipo de comentários, por acaso você sabe o que se passou entre nós os dois? Se não sabe eu conto-lhe. Este palhaço abandonou-me, a mim e à nossa filha, deixou-nos assim, sem mais nem menos. Dizia ele que ia em busca da felicidade perdida.
- Júlia…
- Ele passava os dias sentado no sofá, a olhar para a televisão. Só dizia que era um artista, um actor nato… vendo bem as coisas agora, Francisco, tenho de te dar algum crédito, sempre conseguiste entrar para o mundo da sétima arte, só que em vez de ser como actor, foi como funcionário de uma sala de cinema, nada mau… parabéns! – disse a Júlia.
- Olha… ao menos… ao menos eu esforcei-me, tentei encontrar um trabalho de que realmente gostasse, não queria ser como tu e passar a vida a fazer uma coisa que não gosto… a propósito, ainda continuas a trabalhar naquele emprego que tanto detestas? – perguntou o Francisco.
- Sim, meu grande anormal, e foi graças a esse emprego que viveste às minhas custas durante aqueles anos todos em não fizeste absolutamente nada.
- Continuas na mesma… olha, no meio de tudo isto só tenho pena que a minha filha tenha ficado contigo, com a tua influência nem sei o que vai ser da minha querida filha.
- Grande lata, tu nunca te preocupaste com ela… e já agora, fica descansado, é graças à minha influência que a Joana está agora a estudar na casa da Maria.

O homem que foi chamar o funcionário (Francisco), agarra-lhe pelo braço e os dois afastam-se um pouco da Júlia, de modo a que ela não ouvisse.

- Ouça lá, vocês vão ficar a noite toda nisto? Eu ainda queria ver o resto do filme.
- Olhe… como é que você se chama?
- Artur.
- Olhe, Artur, você já viu como ela é, e…
- Eu não tenho nada com isso, eu só quero sentar-me no meu lugar.
- Artur… porque é que não se senta noutro lugar, só por agora… eu depois até lhe arranjo outro bilhete.
- Nem pensar, a razão está comigo. Ela não se vai ficar a rir, não senhor. Veja se faz alguma coisa.
- O que quer que eu faça?!
- Qualquer coisa, olhe, peça-lhe o bilhete, assim ela vai ver que está no lugar errado.
- Bom… vamos lá, mas aviso-lhe que não vai ser fácil.

Os dois aproximam-se da Júlia.

- Júlia tens aí o teu bilhete? Preciso de o ver. – disse o Francisco.
- O meu bilhete, para quê?
- Porque preciso de o ver, é o meu trabalho.
- Ai sim? Então vais ter de pedir o bilhete às outras pessoas que aqui estão.
- Ok… eu vou depois.
- Não. Primeiro vai pedir o bilhete dos outros, depois eu mostro o meu.
- A senhora realmente é uma… - disse o Artur furioso.
- Sou uma quê? Atreva-se.
- Calma… calma. Eu vou pedir os bilhetes às outras pessoas.

O Francisco foi primeiro pedir os bilhetes aos dois tipos que estavam sentados nos cantos da sala, depois aproximou-se do casal que estava sentado na primeira fila, viu o bilhete do homem, e quando olhou para a mulher do casal…

- Tu?! – disse o Francisco surpreendido.
- Eu posso explicar. – disse ela.
- Tu conheces este tipo, Joana? – perguntou o homem do casal.
- Este tipo, é o pai dela. E você quem é? – disse o Francisco, visivelmente irritado.
- Ah… Olá, como está? – respondeu simpaticamente o homem, esticando o braço para cumprimentar o Francisco. - O meu nome é João, eu…
- Ouça lá, você sabe que a minha filha só tem 15 anos? – perguntou o Francisco, ignorando o gesto do João, que aparentava ter uns 27 anos.
- 18, pai. Tenho 18. – disse a Joana.
- Mas tu disseste-me que tinhas 22. – disse admirado o João.
- 20, João. Eu disse que tinha 20. – respondeu a Joana calmamente.

“Eu considero-me uma pessoa, além disso, considero-me uma pessoa com já alguma experiência em escrever histórias.
Recordo-me, para meu próprio beneficio, de saídas e soluções verdadeiramente inesperadas, mesmo quando as coisas pareciam ter ido dar a um beco sem saída, eu, após alguns momentos de “transe”, encontrava sempre uma maneira de dar a volta às coisas… aquela imagem do tipo a assaltar um Banco com uma banana (Dinheiro & Bananas) foi, e é, um bom exemplo disso mesmo.
Pois bem, por muito que me custe a admitir, e custa-me realmente muito admitir, a verdade, a crua e fria verdade, é que fui vencido, fui atirado ao tapete sem dó nem piedade.
O acima referido pode parecer mau, mas a parte pior ainda está para vir, sim, porque um mal nunca vem só.
Eu até considerava normal ter sido vencido por um daqueles gigantes da luta-livre, ou até, derrotado por um grupo de velhinhas furiosas, mas ser vencido e derrotado por uma miúda? Uma miúda de 18 anos? Uma miúda de 18 anos, que mente? Uma miúda de 18 anos, que mente, e que permanece calma? Que destino mais cruel pode um homem esperar para si mesmo?
Meditei, quase sempre em horário laboral, durante longas horas para tentar encontrar uma forma de vencer esta miúda, mas tudo foi em vão.
“Tudo foi em vão…”, depois de dizer, e escrever isto, acabo de ter uma ideia que talvez resulte, talvez eu ainda tenha aquele “je ne sais quois”, sim… é isso! Aquela miúda vai ver uma coisa… mas… onde estão todos?! Bolas, a sala já está vazia.
Bem, já que aqui estou, vou aproveitar e fico para a próxima sessão."

Estava eu sentado, precisamente na última fila, quando uma mulher se aproximou de mim.
- Desculpe, esse lugar é meu. - disse ela...

FIM