27/12/05

O Código Dá Vinte

Eram exactamente vinte horas quando ela entrou no meu gabinete como se fosse um TGV Lisboa – Porto.
Ela apanhou-me completamente desprevenido, nem tive tempo de acabar o que estava a fazer, de qualquer das formas achei melhor puxar as minhas calças para cima.
A estonteante mulher estava visivelmente assustada, pedi-lhe para que tivesse calma e para que tentasse respirar pausadamente, isso fez com que a minha atenção se centrasse nos seus voluptuosos seios, parecia que eles queriam sair para fora da extremamente justa blusa… fiquei logo com a impressão de já ter visto aquele par de perfeição em algum lugar.
Quando ela se sentou e cruzou as pernas, constatei que para além de uma linda mini-saia, ela tinha também umas pernas que me eram claramente familiares, definitivamente eu já tinha visto aquele corpo antes, mas onde… onde?
A resposta bateu-me na cabeça como um taco de basebol: ela era Martina Del Swartzcoff, vinte anos de idade e a única mulher a ser eleita dois anos seguidos como Miss Outubro… Meu Deus, como me lembro bem daqueles meses.
As duas semanas consecutivas a trabalhar como detective privado granjearam-me o know-how essencial para chegar à conclusão que diante dos meus olhos estava uma mulher em apuros.
Ela tirou da bolsa um cigarro, quando o dito roçou aquelas duas almofadas de seda, que eram os seus lábios, já eu estava com o fósforo aceso e pronto para lhe dar lume… ao cigarro.
Pedi para que ela me contasse o que se passava e sentei-me em cima da secretária para melhor a ouvir, e também porque daquele ângulo superior eu tinha uma visão privilegiada da razão… das duas razões porque Martina havia sido eleita Miss Outubro.
Foi por entre algumas passas que ela me assegurou estar a ser perseguida, isso porque ela sabia de um segredo… um segredo terrível.
Levantei-me e passei por trás dela, isto sem qualquer intenção de apreciar o seu esplendoroso traseiro (continuava lindo), assim que me aproximei da janela alguma coisa fez com o vidro se partisse.
Martina assustou-se e imediatamente correu para os meus braços, eu nem queria acreditar, a Miss Outubro estava nos meus braços… e desta vez em carne e osso.
Fosse eu um reles verme e tinha-me aproveitado sem dúvida daquele angelical ser, mas como poderia eu ter a ousadia de me aproveitar de uma pessoa assim tão bela e incrivelmente excitante?
Ainda por cima uma pessoa, que mesmo sem o saber, já tinha sido a fonte inspiradora de tantos e tão deliciosos momentos de prazer… não, eu seria incapaz de descer tão baixo.
Martina, ainda recolhida nos meus braços protectores, implorou para passar aquela noite em minha casa.
A doce criatura estava verdadeiramente assustada com tudo aquilo.
Acalmei-a dizendo-lhe que o vidro da janela poderia ter-se partido por causa de um pombo mais distraído, ou então teria sido um miúdo na brincadeira… um miúdo com a pontaria e força necessárias para partir o vidro de uma janela de um gabinete situado no vigésimo andar.
Acima de tudo assegurei-lhe que a bala encontrada no chão, perto do vidro partido, não significava, nem provava, absolutamente nada.
Martina ficou mais tranquila.
Claro, para ser sincero, eu bem que gostaria de a ter levado para casa comigo naquela noite, mas infelizmente a minha cabra é muito ciumenta, por isso resolvi chamar um táxi que a levasse a casa.
Quando ela entrou no carro pedi-lhe que voltasse no dia seguinte, ainda haviam muitas coisas por esclarecer, entretanto, e para que ela se sentisse mais segura, eu garanti-lhe que nada de mau lhe iria acontecer até lá.
Martina Del Swartzcoff foi assassinada!
Soube dessa tragédia no dia seguinte, depois de tirar à força, o jornal da boca da Maria, a minha cabra de estimação.
Fiquei perplexo com a notícia escancarada na primeira página: “Coelhinha Assassinada! Martina Del Swartzcoff, eleita duas vezes Miss Outubro, foi ontem à noite assassinada com vinte tiros. Martina deslocava-se num táxi a caminho de casa quando subitamente, de dentro de um carro que a perseguia, alguém começou a disparar…”.
Pobre miúda, tão nova… enquanto lia, na minha cabeça começaram a ser formadas algumas perguntas que me inquietavam: quem teria feito aquilo, estaria Martina realmente a ser perseguida, qual o segredo que ela guardava e, talvez a dúvida que mais me preocupava, quem é que me iria pagar os vinte euros que Martina me ficou a dever pela consulta?
Peguei na minha gabardina e meti-me a caminho do lugar onde eu achava que iria encontrar algumas respostas: a Mansão Playboy.
Não foi difícil entrar, estes tipos adoram qualquer tipo de publicidade, principalmente a gratuita, por isso inventei um estranhíssimo sotaque irlandês e disse chamar-me Jack McCormack, jornalista em ascensão da revista “M'n'M’s”.
Mandaram-me sentar e esperar que me chamassem, por sorte o “Patrão” estava na Mansão e iria receber-me.
Enquanto eu esperava aproximaram-se de mim duas… deusas, palavras não fazem justiça suficiente à estonteante beleza de ambas, apenas posso garantir que se elas não fossem de raças diferentes seriam gémeas.
As duas estavam vestidas com uma espécie de uniforme lá do sítio: jeans extra-justos e top preto com o logótipo da Playboy estampado a dourado.
Assim que a mulata olhou para mim eu soube imediatamente que algo mágico iria acontecer ali, levantei-me, contudo ela fez sinal para eu permanecer sentado, obedeci.
Ela virou-me as costas e fez mais um sinal, desta vez destinado à amiga ruiva que se aproximou.
As duas ficaram cara a cara, literalmente.
A ruiva passou o rosto pelos cabelos ondulados da amiga, eu nem pestanejava.
Subitamente a mulata deu meia volta e ficou de costas voltadas para a amiga, eu continuava sem pestanejar.
A “coelhinha” ruiva começou a deslizar as mãos pela cintura da colega enquanto lhe beijava o pescoço, a mulata invadida pelo prazer mordeu os lábios, eu pestanejei, naquela fracção de segundo, já a mulata estava novamente virada para a ruiva, elas beijaram-se.
Aquilo era como se eu estivesse a ver o Canal Playboy, com a vantagem de eu estar lá… não resisti à tentação, levantei-me.
Assim que me aproximei delas, cada uma agarrou-me num braço e levaram-me; mesmo sem saber para onde ia pus o mais estúpido sorriso que alguma vez tinha usado.
Entrámos numa sala e o meu sorriso foi à vida, diante dos meus olhos estava, nem mais nem menos, que o “Imperador” em pessoa: Hugh Hefner, fundador do império Playboy.
Fiz as minhas contas: eu, duas miúdas e um velho pervertido… disse imediatamente que não alinhava em cenas maradas.
Hefner soltou uma sonora gargalhada e convidou-me a sentar; enquanto eu me sentava reparei que naquela sala, para além da secretária onde Hefner estava sentado, as paredes estavam cheias de fotografias, quase em tamanho real, das mais famosas “playmates”, no entanto não vi nenhuma fotografia da Martina, logo ela que tinha sido a única a ser eleita duas vezes seguidas Miss Outubro…porque teria sido ela excluída?
A rapariga mulata e a amiga ruiva colocaram-se ao lado do velho Hefner, que continuava a falar como um papagaio sobre a história daquela empresa; talvez tenha sido impressão minha, ou então estaria ainda meio atordoado por causa do espectáculo das miúdas, mas pareceu-me que os dentes incisivos superiores de Hefner eram anormalmente grandes… quase como dentes de coelho.
Passados poucos minutos a porta da sala abriu-se, entraram dois tipos enormes, parecidos com lutadores de luta-livre, cheguei à conclusão que eles eram funcionários porque estavam vestidos exactamente da mesma maneira que as miúdas… isso deixou-me preocupado.
Ainda mais preocupado fiquei quando um deles sussurrou qualquer coisa no ouvido de Hefner… algo me dizia que eu estava em apuros.
Com um simples estalar de dedos Hefner mandou as miúdas sair da sala, não tive dúvidas, o meu disfarce tinha sido descoberto.
Levantei-me e tentei sair de fininho mas isso não passou mesmo de uma tentativa, os dois tipos enormes, ainda que ridiculamente vestidos, eram bem mais fortes que eu, por isso voltei a sentar-me quando eles se puseram ao meu lado.
O velho Hefner levantou-se e veio ter comigo, perguntou-me porque é que eu tinha mentido dizendo que era um jornalista, pensei rápido e respondi que aquela foi a única forma que eu encontrei de falar com ele por causa da Martina, Hefner ficou branco, era óbvio que aquele não era um tema bem vindo.
Hefner queria saber se Martina me tinha falado no Código, aliviei a tensão dizendo que eu apenas pretendia receber os vinte euros que ela me tinha ficado a dever, Hefner deu uma gargalhada.
Ele engoliu a história, pagou-me e eu saí dali para fora mesmo a tempo, ou não fosse o meu nome Justin Time.
Cheguei a casa e fui tomar um duche.
Qualquer pessoa de bom-senso iria esquecer o que se tinha passado mas não eu, achei que deveria fazer alguma coisa, qualquer coisa, era mais que evidente que Hefner estava envolvido na morte da Martina, sem dúvida ela sabia demais e foi preciso silenciá-la... mas que raio seria o Código?
Felizmente tenho uma boa memória, recordei todos os passos que dei até então e cheguei à seguinte conclusão: o Código dá Vinte.
Talvez para algumas pessoas os factos que vou descriminar não passem de simples coincidências, mas para mim eles são a prova irrefutável que o Código dá Vinte.
Eis as provas:

Martina entrou no meu gabinete às VINTE horas.
O nome Martina Del Swartzcoff tem exactamente VINTE letras.
Martina tinha VINTE anos.
Martina foi eleita Miss Outubro (mês 10), duas vezes seguidas, logo 10+10=VINTE.
O meu gabinete fica no VIGÉSIMO andar.
Martina foi assassinada com VINTE tiros.
Martina ficou a dever-me VINTE euros.
O nome Hugh Hefner tem 10 letras, 10 letras x 2 nomes = VINTE.
Hefner nasceu em 9/4/1926, significa que 26 - 19 (ano) = 7 ... 7 + 9 (dia) = 16 ... 16 + 4 (mês) = VINTE.

Mas o que significa o Vinte, e que relação tem Hefner com esse número?
Fiz mais algumas pesquisas por minha conta, que incluíram a compra massiva de revistas Playboy, e mais uma vez o resultado final foi surpreendente.
Hugh Hefner nasceu em Chigaco, Illinois, essa constatação é do conhecimento público, o que poucas pessoas sabem é que ele descende directamente dos primeiros nativos que habitaram aquela região, os Potawatomis.
Um ramo familiar dessa tribo, aquele a que Hefner pertence, nasceu com graves deformações físicas: orelhas enormes, corpo inteiro coberto de pêlo, dentes incisivos superiores gigantescos; foi-lhes dado o nome de Plabo (este nome viria a dar origem à palavra Playboy), que significa no dialecto dos Potawatomis “homem-coelho”.
Ao longo de gerações os Plabo foram votados ao ostracismo pelos outros ramos familiares descendentes dos Potawatomis, foram inclusivamente expulsos daquela região, mudando-se mais para Norte.
Vingança mortal foi jurada.
Existem hoje em dia milhões de Plabo’s espalhados pelo Mundo, a sua existência é contudo difícil de provar, uma vez que eles vivem escondidos da sociedade, ou então, aqueles que realmente são visíveis sujeitaram-se a grandes intervenções cirúrgicas para conseguirem passar por pessoas ditas “normais”, Hugh Hefner é um deles.
Ele é inclusivamente o Alto Comandante da PSIHC – Plabo, Sociedade Independente de Homens-Coelho – durante anos Hefner usou e continua a usar a sua revista Playboy para fazer passar mensagens ocultas através dela, o que para o comum dos mortais são simples mas belas fotografias de mulheres nuas, para os Plabo’s são orientações militares com vista ao ataque… e é aqui que entra finalmente o Vinte.
O ataque final dos Plabo’s, aquele que vai dizimar a população mundial por completo, já tem data marcada, será no ano 2020.
Em conclusão lanço um apelo, um apelo ao Mundo, ninguém está excluído: temos de impedir que as loucas intenções dos Plabo’s se tornem em realidade.
O que sugiro é uma coisa difícil de concretizar, aliás, muitíssimo difícil, mas é a nossa única hipótese: vamos eliminar a forma de contacto entre os Plabo’s, para isso o sacrifício supremo tem de ser activado: temos de deixar de comprar revistas Playboy, bem sei o sofrimento e dor que isso implica mas tem de ser, a salvação do Mundo está nas nossas mãos.

Fim

nota para mim mesmo: se esta treta não vender com gajas nuas, pensar numa alternativa, talvez substituir as fotografias por quadros de pintores famosos como Picasso… ou melhor, como Da Vinci, o título até podia ser “O Código Da Vinci”… talvez meter a Igreja no meio. É esticar muito a corda mas pode ser que alguém engula isso…

D.Brown

FIM

16/12/05

A Mais Pequena História de Natal do Mundo


Era uma vez um velho pedaço de papel reciclado, o seu sonho… sim, os papéis também têm sonhos, mesmo os reciclados, o sonho dele era ser útil.
Ele percorreu milhares de quilómetros, literalmente ao sabor do vento, durante essa longa viagem, o pedaço de papel reciclado, viu e ouviu muita coisa, mas de que vale ser um papel se não se pode escrever nele aquilo que se vive ou viveu?
Certo dia o já amarelecido pedaço de papel reciclado ficou preso numa árvore, “é o fim!”, pensou ele, de facto, que utilidade poderia ter um velho pedaço de papel reciclado no topo de uma árvore?
Pois bem, foi precisamente esse pedaço de papel que chamou a atenção de uma criança para aquela árvore.
E lá está ele, o velho pedaço de papel reciclado foi moldado numa estrela e enfeita agora o topo da árvore de Natal da família daquela criança.
Velho… reciclado?! Sim, mas orgulhosamente útil e feliz.
FELIZ NATAL!

(voz de @vilmacorreia)

14/11/05

ISTO É UM ASSALTO!

“ISTO É UM ASSALTO!” – gritou Nunes Martim virado para o empregado do Banco que, estranhamente, se começou a rir… como é que Nunes Martim, um homem de trinta e quatro anos e mais ou menos bem-parecido, se tornou num assaltante de Bancos e porque é que o empregado do Banco se riu?!
Para obter as respostas é necessário fazer um conveniente flashback… cá vai ele:

Nunes Martim nasceu e cresceu com uma ideia fixa na cabeça: tornar-se no maior e mais brilhante cómico que o País alguma vez viu… e ouviu.
O único, mas ao mesmo tempo, grande problema é que ninguém o levava a sério, e não ser levado a sério é provavelmente a pior coisa que se pode fazer a um cómico.
Grande parte da adolescência de Martim foi dedicada ao estudo, em pormenor, de actuações dos seus cómicos preferidos da altura, mais concretamente ele passava horas intermináveis colado ao ecrã da televisão a ver os noticiários.
Porém, todas aquelas horas de trabalho duro e árduo, passadas com o cu sentado no sofá, pareciam não ter servido para nada, uma vez que ninguém ligava absolutamente nada ao que Martim fazia ou dizia.
Tudo isto mudou quando Martim fez vinte anos, nesse dia alguém lhe deu a primeira grande oportunidade para que ele demonstra-se o seu real valor: Martim foi trabalhar para uma Fábrica de confecções (o “alguém” era o pai de Martim).
A experiência fabril revelou-se muito produtiva, não necessariamente para a Fábrica, Martim usou (e abusou) dos dois anos e meio em que lá “trabalhou” para efectuar alguns “estudos humanizados de comportamento alheio quando submetidos a situações potencialmente cómicas”… basicamente ele foi o palhaço de serviço.
Foi ainda durante a estadia naquela unidade fabril que Martim conheceu duas pessoas que viriam a ser essenciais no seu futuro: Tai-Pan – a namorada Sul-Coreana e Varetas – um tipo com mais de dois metros de altura que se tornou no seu melhor amigo.
Martim achava-se mais do que pronto para conquistar o País com o seu peculiar sentido de humor, nessa altura ele tinha quase vinte e três anos de idade e na sua cabeça a hora da consagração nacional tinha chegado, era por isso necessário seguir em frente, encarar o futuro olhos nos olhos e deixar a Fábrica para trás… a carta de despedimento que ele recebeu ajudou-o imenso nessa decisão.
Desempregado, sem dinheiro, com uma namorada muito bonita mas incapaz de pronunciar mais do que um limitado conjunto de palavras em português, com um novo melhor amigo capaz de pronunciar um gigantesco conjunto de palavras em português mas quase todas sem sentido, com uma carreira no “showbiz” em risco de terminar mesmo antes sequer de ter começado e com… uma enorme dor de cabeça, com tudo isto, Martim, fez aquilo que qualquer pessoa faria quando colocada em situação semelhante: foi pedir um aumento na mesada aos pais.
A “consulta familiar” foi um estrondoso sucesso em termos de entretenimento (os pais de Martim fartaram-se de rir), porém em termos financeiros foi uma nulidade.
A Martim só restava seguir um caminho: aquele que o levaria ao gabinete do Fundo de Desemprego local.
Acompanhado por Tai-Pan e Varetas, Martim entrou cabisbaixo no malfadado gabinete, no entanto foi exactamente aí, nesse improvável local, que a fulgurante escalada de Martim rumo ao sucesso teve o seu início.
A atmosfera dentro do edifício governamental era, como em todos os edifícios governamentais, uma atmosfera pesada, havia uma fila enorme de pessoas em pé, todas com ar de quem estava num funeral (no seu próprio funeral), elas aguardavam mais ou menos pacientemente a sua vez de serem atendidas pelas simpáticas funcionárias… correcção: havia apenas uma funcionária e a simpatia dela, a julgar pelo modo como atendia as pessoas, ter-se-ia perdido para sempre nos lacrados corredores do passado.
Para “animar” o povo, o Governo (ou algo semelhante) resolveu pendurar uma pequena televisão numa das paredes, na altura estava a ser transmitida, sem som, uma entrevista a um candidato a Presidente da República.
Martim, qual Comandante Supremo da maior super-potência mundial, examinou meticulosamente o cenário, era preciso agir, e agir depressa, o tédio estava a atacar com todas as armas possíveis e imaginárias.

Martim: Pessoal, temos de fazer alguma coisa… estas pessoas precisam da nossa ajuda senão ainda se transformam em estátuas… olhem para elas, parecem zombies a caminho da incineração.
Varetas: Ainda a semana passada vi um filme sobre zombies, aquilo metia mesmo medo… eles só eram destruídos com espuma…
Martim (pensativo): Espuma? Hum…
Tai-Pan: O que é um zombies?
Varetas: Zombies são pessoas mortas que pensam estar vivas.

Varetas apontou para a televisão, onde a entrevista muda ao político continuava.

Varetas: Vou-te dar um exemplo prático, Tai-Pan. Olha para a televisão… vês aquele homem engravatado e com ar de quem fez um pacto com o Diabo? Vês os olhos dele? Aquilo é um zombie.
Martim (entusiasmado): É isso!
Varetas: Ainda bem que concordas comigo, eu…
Martim: Vamos usar o extintor!
Varetas: Extintor?!
Tai-Pan: O que é um extintor?!
Varetas: Espera… tu não estás a pensar em usar um extintor, pois não?!
Martim: Claro que não! Estou a pensar em usar dois extintores.
Tai-Pan: Mas o que é um extintores?
Martim: Já vais perceber, Tai-Pan. O plano é o seguinte: eu vou ali para o meio e começo a contar uma piada sobre o Natal, quando eu disser a palavra “neve”, vocês os dois, com jeitinho, despejam um bocado dos extintores em cima de mim… o pessoal vai curtir bué a cena.
Tai-Pan: Um extintores… faz neve?!
Varetas: Achas mesmo que isso vai funcionar?
Martim: Não. Tenho a certeza. Agora, cuidado, vocês os dois têm de despejar os extintores com jeitinho.

“Despejar os extintores com jeitinho”, esta frase ecoou interminável e dolorosamente dentro da cabeça de Martim, à medida que ele e os amigos eram transportados num carro da polícia rumo à esquadra mais próxima.
Tudo aquilo que acontece na vida tem sempre dois lados: o bom e o mau, até mesmo os políticos têm um lado bom… tudo aquilo que acontece na vida, à excepção dos políticos, tem sempre dois lados: o bom e o mau.
O lado mau da “performance” de Martim é que ele foi multado pela polícia por “atentado contra o bom funcionamento da Função Pública”, o lado bom é que Martim, assim que saiu da esquadra, foi imediatamente abordado por uma equipa de repórteres televisivos.
O lado ainda melhor de tudo é que aquele não era um canal de televisão normal, não senhor, aquele era um canal diferente, único, excitante e inovador, um canal vocacionado apenas para a exploração fria e crua de escândalos, algo nunca visto até então.

Repórter: Como é que teve a brilhante ideia dos extintores?
Martim: Bem… para ser franco a ideia até nem foi minha, eu…
Repórter: É pena… você poderia ficar famoso por isso.
Martim: Famoso?! Claro que fui eu, Nunes Martim, quem teve a ideia… a brilhante ideia dos extintores… sabe, desde criança que o meu sonho é ser famoso, eu lembro-me que…
Repórter: Diga aos nossos telespectadores… você foi agredido pela polícia?
Martim: Não… só fui multado.
Repórter: É pena… isso iria torná-lo num herói.
Martim: Herói?! Bem… eu não queria dizer nada, mas a verdade é que… fui insultado.
Repórter: Só isso… só insultos?
Martim: Insultos… ao mesmo tempo que me davam estalos… na cara.
Repórter: Estalos?
Martim: Ao princípio, mas depois deram-me murros… fortes murros… e pontapés… no estômago. Nem sei como não fiquei com marcas no corpo… da agressão… brutal.
Repórter: Vai apresentar queixa contra os polícias?
Martim: Acho que não vale a pena, eles estavam só a fazer o trabalho deles.
Repórter: É pena… isso iria torná-lo num modelo a seguir pela juventude.
Martim: Vou até às últimas instâncias… Supremo Tribunal, se for preciso… lutarei para que ninguém passe por aquilo que eu passei lá dentro… foi mau de mais.

A entrevista, quando foi para o ar, teve tanta audiência que o Director-Geral daquele canal quis imediatamente marcar uma reunião com Martim.

Director-Geral: Parabéns! O amigo tornou-se numa verdadeira estrela, sabia? Nós recebemos muitas chamadas e e-mails de pessoas interessadas em saber mais coisas sobre si… diga-me, já pensou em fazer televisão?
Martim: Não, para ser franco, não. Nunca me interessei muito por electrónica.
Director-Geral: Realmente você tem piada, mas sabe, hoje em dia já não basta fazer rir, é preciso chocar as pessoas, acha que era capaz disso?
Martim: Acho que não, doutor, eu teria de ter um traseiro enorme para conseguir isso... para chocar, digo.
Director-Geral: Vejo que temos homem! Gosto muito de pessoas assim… como você.
Martim: Tem piada, sabia que a minha namorada diz-me o mesmo?

Depois da elucidativa reunião, Martim foi obviamente contratado e começou imediatamente a pensar num programa de televisão inovador para apresentar, algo tão brilhante e genialmente original que ele estava certo iria revolucionar o panorama televisivo mundial.
Algumas semanas depois, Martim apresentou o seguinte manuscrito ao Director-Geral:

“A minha ideia é…”

Como sempre, o Director-Geral achou que aquilo era mais uma piada e riu-se imenso, não compreendendo ele o drama da coisa.
Martim começou então, ao serviço daquele canal, a fazer entrevistas no exterior, Varetas - que entretanto se tinha despedido da Fábrica, acompanhou-o como camera.
As entrevistas começaram a ter um fenomenal sucesso, elas eram realmente… diferentes.
Como esta, feita a uma estrela de rock internacional:

Martim: Está a gostar de Portugal?
Rock-Star: Ah, sim… claro… é o meu país preferido neste continente.
Martim: Mas você é europeu, não prefere o seu próprio país?
Rock-Star: Portugal fica na Europa?!
Martim: Olha este… amigo, quem faz as perguntas difíceis aqui sou eu... adiante, conhece algum músico português?
Rock-Star: Claro que conheço!
Martim: Pode dar um ou dois exemplos desse raro conhecimento?
Rock-Star: O Figo e o Cristiano Ronaldo… eles são bestiais!
Martim: Mas esses são futebolistas… sabe o que é um músico?
Rock-Star: Ouça lá, vai passar a entrevista toda a contrariar-me?
Martim: Calma, homem… estou apenas a tentar ajudar…
Rock-Star: Deixe isso para os meus assessores.
Martim: É verdade que você foi à “Casa Rosette”, um conhecido bar de… enfim, divertimento sexual?
Rock-Star: …
Martim: Não diz nada?
Rock-Star: Só respondo a perguntas de música… da minha música.
Martim (sussurrar): Era isso que eu temia…
Rock-Star: Como?
Martim: Acha que alguém vai aparecer para o concerto logo à noite?
Rock-Star: Claro… o gigantesco estádio vai estar lotado, para sua informação.
Martim: Pobres diabos… e diga lá, você vai tocar o seu sucesso?
Rock-Star: Qual deles?
Martim (sussurrar): Bolas, ele tem mais do que um?!
Rock-Star: …
Martim: Você sabe realmente tocar algum instrumento?
Rock-Star: Está a ver aquele monte de instrumentos ali? São todos meus… todos!
Martim: Sim… mas você sabe tocar algum realmente?
Rock-Star: São todos meus, sabe o que isso significa? Que eu tenho dinheiro… muito dinheiro… ao contrário de você, que para ganhar a vidinha tem de entrevistar pessoas como eu.
Martim: Sabe que mais? Você tem razão, eu não deveria baixar tanto os meus padrões… Varetas, corta!

Foram entrevistas como esta que granjearam grande fama a Martim e grande proveito financeiro ao Director-Geral.
Martim, Tai-Pan e Varetas foram entretanto viver juntos para um apartamento de luxo.
A popularidade de Martim cresceu de tal forma que, onde quer que ele fosse, as pessoas já ficavam à espera que ele dissesse ou fizesse alguma coisa totalmente inesperada.
Certo dia, mais concretamente numa terça-feira… à tarde… onde o céu estava limpo e a temperatura rondava os 21 graus, nesse exacto dia… às 17 horas, Martim e Varetas entraram numa estação de serviço para atestar o carro.
Quando eles iam a pagar deram conta que as carteiras de ambos haviam sido roubadas, Martim virou-se para o funcionário e disse: “Amigo… não vamos pagar, roubaram as nossas carteiras.”, o funcionário, profundo conhecedor da fama de Martim, riu-se e enquanto piscava um olho a Martim perguntou-lhe quando é que aquilo ia passar na televisão, “Em breve… em breve”, respondeu Martim enquanto se afastava rapidamente daquele local.
Ainda incrédulo com aquela situação, Martim entrou no carro, sentou-se e elaborou ali mesmo uma teoria que para sempre iria modificar o rumo da sua vida: “Se eu tenho de pagar qualquer coisa mas digo que não tenho dinheiro para pagar e mesmo assim as pessoas deixam-me ir embora sem pagar… isso significa que se eu for a um Banco e disser que quero todo o dinheiro que estiver no cofre as pessoas vão dar-mo… e a sorrir.”.
A teoria pareceu bastante credível a Varetas, assim os dois entraram no Banco mais próximo para tirar a prova dos nove.
Martim entrou à frente, Varetas com a câmara de filmar desligada ao ombro entrou logo atrás... resultou!
Todas as pessoas que estavam no Banco acharam imensa graça ao “assalto”, até os seguranças, sempre tão simpáticos, quiseram colaborar levando o dinheiro até ao carro.
Martim planeou assaltar mais alguns Bancos e depois, quando já tivessem bastante dinheiro, ele, Varetas e Tai-Pan iriam fazer uma viagem… uma longa viagem, sem bilhete de volta… e os planos teriam efectivamente dado certo, caso Varetas e Tai-Pan não tivessem fugido com o dinheiro todo.
Nunes Martim jurou-me que tudo isto é verdade, que aconteceu realmente… mas é claro, nunca se pode confiar totalmente no pessoal da Ala B… mas mesmo que não seja verdade, a ideia do canal de televisão feito só com escândalos não me pareceu uma má ideia… não senhor… quem sabe, quando eu sair daqui… quem sabe…

12 de Dezembro de 1979
Hospício Central dos Bem-Aventurados – Ala A
José E. Moniz

FIM

02/11/05

Fábula dos Dois Montes

Todos os dias, quer estivesse sol, chuva, vento, frio ou calor, todos os dias, ininterruptamente durante 57 anos, um velho homem de então 72 anos, subia ao cume do monte mais alto da sua aldeia e sentando-se sempre na mesma pedra, ficava a contemplar em total silêncio o horizonte.
Na realidade o homem concentrava a sua atenção num ponto específico: o monte mais alto da aldeia vizinha, onde um outro homem, sensivelmente da mesma idade, realizava o mesmo ritual de subir ao cimo do monte todos os dias.
Religiosamente, os dois homens passavam duas horas do dia simplesmente a olharem-se ao longe.
As duas aldeias, fartas de não obterem qualquer tipo de explicação para aquele estranho fenómeno, decidiram pôr os dois velhos frente a frente pela primeira vez.
Assim, a meio caminho entre as duas aldeias e com as respectivas populações presentes em peso, os dois homens foram postos cara a cara.
Todos aguardavam com enorme expectativa pelo desvendar do mistério.
Os dois velhos olharam-se nos olhos, fizeram uma pausa e depois subitamente desataram a chorar desalmadamente.
Sabem, apesar de todos aqueles anos, os dois homens nunca se tinham visto de perto, na verdade eles julgavam que a pessoa que estava sentada no outro monte era… uma mulher.
Sem saberem como nem porquê, os dois apaixonaram-se por aquela imagem.
Eles viveram décadas na ilusão de que “ela” era a mulher das suas vidas e que mais cedo ou mais tarde “ela” iria tomar a iniciativa de se aproximar.
Foi um dia duro aquele, para os dois velhos homens, contudo serviu para que eles aprendessem e ao mesmo tempo ensinassem uma grande lição de vida: não se pode passar uma vida inteira a fantasiar, às vezes, digo, muitas vezes, é bem melhor confirmar os dados… pelo sim, pelo não.
Desde aquele dia nunca mais ninguém foi visto sentado no cimo daqueles montes… até eu aparecer.

FIM

01/10/05

O Príncipe Gay

Num sítio onde o chão era todo em tons de verde, o céu laranja, as nuvens azul-bebé, onde não existia noite mas que a um determinado momento do dia o céu tornava-se azul-marinho e as nuvens lilás, nesse colorido sitio, nasceu num céu desses, um Príncipe.
Ao recém-nascido, filho primogénito do Rei Flaput e da Rainha Flámi – regentes do Reino da Flilândia, foi dado o nome de Príncipe Flá.
Passadas algumas mudanças de cor nos céus, o Rei determinou que Flutêncio Flu – um sábio do Reino, ficaria encarregue do desenvolvimento físico e intelectual do novel Príncipe.
O Príncipe Flá contava já 1.440 mudanças de céu – cerca de 4 anos dos nossos, quando a Rainha Flámi deu à luz um novo filho, o Príncipe Flé.
Tal como fizera da primeira vez, o Rei Flaput nomeou um sábio para acompanhar o crescimento do novo filho, o sábio designado foi Flarto Flop.

O céu foi mudando de cor…

O Príncipe Flá tornou-se um jovem esbelto, bem-parecido e culto, por sua vez o seu irmão, o Príncipe Flé pouco cresceu fisicamente, a bem da verdade ele não cresceu quase nada, era praticamente um anão, por isso a conselho do sábio Flop o Príncipe mais novo começou a andar com uma enorme – gigantesca, cabeleira estilo afro para combater a sua mais que evidente falta de altura.
O Príncipe Flá era alvo da inveja do irmão, não só pela sua esbelta figura, sempre impecavelmente vestido, penteado e calçado, mas também pelo sucesso que o primogénito tinha entre as raparigas, era hábito o Príncipe Flá dar longos passeios até às margens do Rio Flis – onde as águas eram cor de chá de limão, na companhia de belas jovens.
Contudo, o Príncipe Flá, aparentemente, não demonstrava qualquer tipo de interesse amoroso por nenhuma das raparigas, facto esse que se viria a tornar na última esperança do Príncipe Flé alcançar o trono em detrimento do seu irmão.
Segundo uma tradição secular o pretendente ao trono do Reino da Flilândia, no dia em que comemorar 7.560 mudanças de céu – 21 anos, terá também, nesse mesmo dia, de contrair matrimónio, caso isso não se verifique o novo Rei será o segundo elemento na linha de pretendentes ao trono.
Como essa data se aproximava rapidamente e o Príncipe Flá continuava a não dar mostras de se querer casar tão cedo, o Rei Flaput mandou chamar à sua presença o sábio Flutêncio Flu.
Insatisfeito com as desculpas e pedidos de paciência feitos pelo sábio, o Rei fez-lhe um ultimato: se o Príncipe Flá não se casasse na data prevista, Flutêncio seria decapitado.
O velho sábio contou ao Príncipe Flá a conversa que tivera com o Rei, o Príncipe, emocionado, abraçou o Flutêncio e disse-lhe que o melhor para todos era que eles revelassem finalmente a verdade, que o Príncipe era gay.

Flutêncio pediu algumas mudanças de céu ao Príncipe para pensar no assunto.

Assim, depois de muitos céus azul-marinho passados em claro a tentar encontrar uma solução para o problema, e quando faltavam somente 15 mudanças de céu para o fim do ultimato, o sábio Flutêncio Flu teve uma ideia.
Nos aposentos do Príncipe Flá, o sábio Flutêncio expôs a sua ideia: chamar, para tentar ajudar o Príncipe, o mais másculo, viril e machista de todos os homens do Reino da Flilândia, nada mais nada menos que o Flota Flex, o Ferreiro.
A ténue esperança do sábio era que Flota ensinasse o jovem Príncipe a tornar-se num verdadeiro macho e assim conquistar o coração de uma donzela.
O Príncipe Flá demonstrou alguma reticência em aceitar uma ideia que lhe parecia completamente louca mas depois deu-se conta que essa mesma ideia seria a única forma de salvar o pescoço do velho sábio, por isso aceitou.

O tempo corria contra eles…

Foi chamada, com carácter de urgência, a presença de Flota Flex perante o sábio Flutêncio Flu.
Flota, um homem com uma compleição física absolutamente fora do normal – media cerca de 2 metros distribuídos por uns 120 quilos, ouviu com atenção a proposta feita pelo sábio, Flota teria recusado imediatamente tal coisa, caso o sábio não lhe tivesse prometido ajudar a família.

O Acordo foi selado e os treinos para transformar o delicado Príncipe num D.Juan tiveram inicio…

Durante 7 longas mudanças de céu, Flota ensinou e fez de tudo para que o Príncipe Flá passasse a ter uma atitude mais máscula e viril mas nada… mesmo depois de todos os ensinamentos o Príncipe continuava com a mesma maneira de ser delicada, feminina e com um desconcertante sentido de humor que fazia o Flota rir-se descontroladamente, os dois acabaram por se tornar amigos.
O dia em que o Príncipe se teria de casar aproximava-se rapidamente, o sábio Flutêncio vendo as coisas mal paradas resolveu marcar mais uma reunião secreta para encontrar uma nova solução para o problema.
Flota, Flutêncio e o Príncipe Flá reuniram-se nos aposentos do último julgando assim estarem a salvo dos olhares e ouvidos indiscretos, porém, escondido num dos armários do Príncipe Flá estava, a ouvir tudo, o seu irmão, o Príncipe Flé.
Ignorando o facto de que estavam a ser espiados, os três debateram durante algum tempo o que fazer porém ninguém conseguia encontrar uma solução.
A dado momento da conversa Flota, revelando grande nobreza e generosidade para com o, agora seu amigo Príncipe Flá, “atirou” para cima da mesa uma ideia, uma ideia tão louca que era muito bem capaz de funcionar: já que ele não tinha conseguido transformar o Príncipe num homem viril e másculo, porque não tentar o contrário, o Príncipe tentar ensinar-lhe a ele a como se comportar como uma jovem mulher?
A finalidade da ideia era Flota passar-se por mulher só o tempo necessário para que o casamento se realizasse e assim salvar a vida de Flutêncio e ao mesmo tempo tornar o Príncipe Flá em Rei, uma vez coroado ninguém, nem mesmo o Rei Flaput, poderia fazer nada contra o Príncipe.
Agradecendo o gesto e nada tendo a perder em pelo menos tentar, o Príncipe Flá aceitou a sugestão do amigo e pouco tempo depois as aulas para transformar o enorme Flota numa delicada “donzela” tiveram início.
Foi mandado fazer um vestido de noiva com as medidas de Flota.

Preparados, ou não, o dia do casamento tinha chegado…

O Castelo estava todo enfeitado com milhares de bandeiras ostentando as cores oficias do Reino da Flilândia – laranja, branco e azul, lá dentro decorria, perante centenas de súbditos, a cerimónia matrimonial.
O Príncipe Flá e Flota – este envergando um lindo mas enorme vestido de noiva e com o rosto coberto por um véu, estavam de mãos dadas no altar perante o Bispo do Reino, os Reis olhavam, desde o trono, com um ar enternecido para o Príncipe Flá, tudo parecia correr bem, ninguém desconfiava de nada.
A certa altura o Bispo fez a tradicional pergunta: “Se alguém tiver alguma coisa a dizer contra a realização deste casamento que fale agora ou então que se cale para sempre.”, ninguém a abriu a boca.
O Bispo preparava-se para continuar com a cerimónia quando a voz de alguém se fez ouvir, era a voz do Príncipe Flé.
“Eu… eu tenho uma coisa a dizer contra este casamento!”, disse ele enquanto o sábio Flop o ajudava a sair da cadeira onde estava sentado.
O burburinho foi imediato, o Rei Flaput ordenou silêncio aos súbditos e exigiu céleres explicações ao Príncipe Flé.
O “minúsculo” Príncipe, com um sorriso maquiavélico estampado no rosto e com os olhos carregados de cinismo aproximou-se do Flota, ordenou que ele se curvasse e depois destapou-lhe o rosto.
A multidão deu um grito de admiração em uníssono quando o rosto de Flota foi revelado.
“Senhor meu Pai, Rei soberano do nosso belo Reino da Flilândia, tenho o desgosto de Vos informar que o Vosso filho primogénito é… é… Senhor, a palavra exacta ainda não foi inventada mas digo-Vos que ele é um admirador… um grande admirador de pessoas do mesmo sexo. Sim, Vossa Alteza, o Vosso filho traíu-Vos e traiu também a confiança do Vosso povo, este casamento não se pode realizar, como tal, e como está escrito a letras douradas no livro sagrado da nossa tradição, exijo aqui e agora, perante Vossa Senhoria ser coroado Rei.”, disse o Príncipe Flé.
O Rei Flaput olhou na direcção do sábio Flutêncio e perguntou-lhe se as bombásticas palavras do Príncipe Flé eram verdadeiras.
Flutêncio ajoelhou-se perante o Rei, implorou misericórdia para com o Príncipe Flá e autoproclamou-se o único culpado daquela situação.
Flota também se ajoelhou e demandou ser ele mesmo o castigado pois tinha falhado na missão de fazer o Príncipe Flá interessar-se por mulheres.
Comovido com os gestos dos amigos, o Príncipe Flá corajosamente disse que se alguém ali deveria ser castigado era ele uma vez que tinha quebrado uma tradição secular.
“Senhor meu Pai, porque não castigais os três infiéis? Escumalha como esta não é digna de pisar o mesmo chão que Vossa Senhoria.”, disse o Príncipe Flé, esfregando as suas ridiculamente pequenas mãos.
O Rei Flaput uma vez mais exigiu silêncio, ele levantou-se do trono, colocou as mãos atrás das costas e andou pensativamente de um lado para o outro, algum tempo depois ele voltou-se a sentar no trono e anunciou a sua decisão.
A maior parte das pessoas ficou estupefacta uma vez que o Rei Flaput deu mais importância ao facto do Príncipe Flá ter amigos, amigos leais que estavam dispostos a sacrificarem-se por ele, do que ao facto do Príncipe ser um... um… um grande apreciador de pessoas do mesmo sexo.
“Senhor meu Pai, de certo brincais… exijo ser coroado Rei.”, disse revoltado o Príncipe Flé, enquanto se colocava em bicos de pé para parecer mais ameaçador.
O Rei Flaput olhou-o nos olhos e perguntou-lhe onde estavam os amigos do Príncipe, aqueles que o apoiavam desinteressadamente, sem responder, o Príncipe Flé baixou a cabeça, parecendo ainda mais pequeno do que aquilo que ele já era.
“Para ser respeitado é preciso saber respeitar.”, advertiu o Rei Flaput.

O destino de cada um ficou logo ali, naquele dia, traçado:
O Príncipe Flá, apesar de não ter casado, foi coroado Rei.

Flota foi nomeado "Primeiro-ministro da Flilândia".
O sábio Flutêncio pôde finalmente gozar as suas merecidas férias e partiu para parte incerta.
O sábio Flop – responsável pelo crescimento físico e intelectual do Príncipe Flé, foi despedido, como castigo, a partir daquele dia a palavra “Flop” passou a ser sinónimo de fracasso… ainda hoje isso assim é.
O Príncipe Flé apresentou-se “voluntariamente” para exercer o cargo de “técnico oficial de limpeza alheia” – passou a limpar as casas de banho públicas do Reino.

Milhares de mudanças de céu depois o, então Rei Flá, adoptou um bebe do sexo masculino, garantindo dessa maneira a continuação da família real.

Nunca se soube ao certo se o Rei Flá encontrou ou não, o amor da sua vida, esse é um episódio ainda incerto nesta história e na verdade isso nem é importante, importante é lembrar e relembrar as sábias palavras do Rei Flaput, palavras que mais que nunca, hoje, devem ser ouvidas: “Para ser respeitado é preciso saber respeitar.”


FIM

23/06/05

A Mão

SÁBADO
DIA - INTERIOR – QUARTO

Heitor Ferraz (34 anos, arquitecto) veste uma t-shirt, Olga Martins (32 anos, arquitecta) está sentada na cama a mexer num computador portátil.

Heitor: Tens a certeza que não queres vir até à praia, querida? O dia está lindo.
Olga: Eu sei, amor... mas tenho de adiantar este projecto... vai tu e diverte-te por mim.
Heitor: Continuo a achar que trabalhas demais, hoje é sábado e deverias descansar mas tu é que sabes… se quiseres quando eu voltar dou-te uma ajuda.
Olga: Obrigado... agora vai senão perdes as melhores ondas.

Heitor aproxima-se de Olga, dá-lhe um beijo e sai do quarto.
Olga continua a mexer no computador até ouvir a porta da rua a bater, ela corre para a janela e vê Heitor a entrar para o Jipe.
Olga volta para o computador.

Monitor do Computador: Pronto... ele já foi surfar... podes vir!!

INTERIOR – JIPE DE HEITOR

Heitor olha para a praia.

Heitor (sozinho): Isto hoje está lotado, vai ser impossível surfar aqui... acho melhor procurar outro sitio.

Heitor procura qualquer coisa no porta-luvas do Jipe.

Heitor: Merda, esqueci-me do telemóvel em casa... que se lixe, não vou demorar muito.

INTERIOR – QUARTO

Olga e Jorge Magalhães (25 anos) estão deitados na cama.

Jorge: Já sabes quem foi o escolhido para ficar na firma?
Olga: Já te disse que só para a semana é vai ser escolhido o nome do estagiário que vai ficar a trabalhar nos escritórios... tem calma.
Jorge: É que eu preciso mesmo desse emprego... diz-me, achas que tenho o talento necessário?
Olga (a rir) : Talento para arquitecto ou para amante?
Jorge: Esclarece-me uma coisa, tu és realmente importante lá dentro, não és?! Espero não andar a "comer" a pessoa errada.
Olga: Parvo... se depender de mim vais ficar no gabinete ao lado do meu.
Jorge: Mas esse não é o do teu marido?
Olga: É... quer dizer, por enquanto é mas nunca se sabe o que pode acontecer no futuro.

Jorge debruça-se sobre Olga.

Jorge: Pois eu sei o que te vai acontecer agora...
Olga (a sorrir): O quê?

Jorge segreda qualquer coisa no ouvido de Olga, os dois riem-se e depois beijam-se ardentemente.

EXTERIOR – PRAIA

Heitor estaciona o Jipe e tira a prancha de surf.
A praia está quase deserta apenas se vêem dois jovens surfistas a conversar perto do mar, Heitor vai ter com eles.

Heitor: Boas, tudo bem? Este spot parece fantástico.
Jovem 1: Ya... hoje o mar tá gringo.
Jovem 2: Mas pra quem não conhece pode ser perigoso, especialmente pra quem já não é nenhum jovem.

Os jovens riem-se.

Heitor: Já vi tudo... vocês acham que o cota aqui não sabe surfar... é isso, bacanos?
Jovem 2: Bem...

Heitor afasta-se dos jovens e caminha na direcção do mar depois ele vira-se para os jovens.

Heitor: Os meninos são surfistas ou as pranchas é só para enfeitar? Vão ficar aí especados?

Jovens falam entre si enquanto Heitor espera.

Jovem 1: Vamos mostrar ao palhaço quem são os donos deste spot.
Jovem 2: Bora lá.

Os jovens juntam-se a Heitor e os três entram no mar.
Durante um bom bocado tudo corre bem mas inesperadamente Heitor é derrubado por uma enorme onda, embate com a cabeça na prancha e perde os sentidos.
Com alguma dificuldade os jovens conseguem tirar Heitor da água.

NOITE - INTERIOR – SALA

Olga pega no telefone e liga para Pedro Bastos (35 anos).

Olga (ao telefone): Pedro, sou eu, a Olga...
Pedro: Olá, Olga... tudo bem?
Olga: Comigo está mas estou preocupada com o Heitor, ele saiu cedo para ir surfar e ainda não voltou, o pior é que ele se esqueceu de levar o telemóvel.
Pedro: Ele foi surfar? Então o mais certo é que ele tenha perdido a noção das horas e esteja agora a conversar sobre surf com algum amigo. Não te preocupes...

Ouve-se motores de automóveis.

Olga: Parece que estou a ouvir o Jipe dele a chegar.
Pedro: Eu não disse? Olha, já agora diz-lhe para ele não se esquecer do jogo na quarta-feira.
Olga: Eu digo... obrigado e desculpa o incomodo, um beijo.
Pedro: Outro, até logo.

Olga desliga o telefone e senta-se no sofá.
Ouve-se a campainha da porta.

Olga (enquanto se levanta e caminha até à porta): Lindo serviço, esqueceste-te do telemóvel e das chaves de casa, só não te esqueces da cabeça porque ela está agarrada ao... corpo.

Olga fica surpreendida por ver do outro lado da porta dois polícias.

Policia 1: Boa noite, minha senhora, aquele Jipe é do seu marido, o senhor Heitor Ferraz?
Olga: Sim, é... o que se passa... o que aconteceu ao Heitor?
Policia 1: O senhor Heitor teve um acidente...
Olga: Acidente?!
Policia 1: Tente manter a calma.
Olga: Onde é que ele está, ele está bem?
Policia 2: O seu marido está no hospital, nós não sabemos de mais nada, apenas recebemos ordens para trazer a viatura até aqui e para levar a senhora até ao hospital, se quiser, claro.
Olga: Eu vou buscar a minha carteira.

INTERIOR - HOSPITAL - GABINETE DA DRª ELISABETE

Olga está sentada diante da Dr.ª Elisabete Silva (33 anos).

Doutora: ... e só vamos saber ao certo o que se passa com o seu marido quando tivermos nas mãos os resultados dos exames que mandámos fazer, neste momento o prognóstico é reservado...
Olga: Durante quanto tempo é que ele vai ficar em coma, Dr.ª Elisabete?
Doutora: Como já lhe disse é difícil prever o que pode acontecer nestes casos, o melhor é não especular, o Sr. Heitor é ainda jovem e isso é uma vantagem neste caso, temos de tentar ser optimistas.
Olga (cabisbaixa): Pois...

A Doutora levanta-se e vai confortar Olga.

Doutora: Ouça, eu sei que é difícil mas o melhor que a Olga tem a fazer é ir para casa e tentar descansar, nós temos o seu contacto e assim que houver alguma alteração no estado do seu marido nós imediatamente entrámos em contacto consigo.
Olga: Posso ver o Heitor... por favor?
Doutora: Está bem, vamos lá.

INTERIOR - HOSPITAL - QUARTO ONDE ESTÁ INTERNADO HEITOR

Olga: Dr.ª Elisabete, posso ficar um momento a sós com ele?
Doutora: Bem, pode... mas só por alguns instantes, eu fico no corredor à espera, não demore.
Olga: Obrigado.

A Doutora sai do quarto, Olga pega na mão direita do Heitor e fica a olhar para o rosto dele.
Ela sente que Heitor a está a apertar com a mão.

Olga (voz alta): Doutora...

A Doutora entra no quarto.

Doutora: O que aconteceu?!
Olga: Foi o Heitor, ele apertou a minha mão...
Doutora (enquanto põe a mão de Heitor debaixo do lençol): Olga, isso é impossível, talvez tenha imaginado, deve ser do stress... é melhor ir descansar… venha, eu acompanho-a até à saída.

A Doutora e Olga saem do quarto.
Um dedo da mão de Heitor mexe-se.

SEGUNDA-FEIRA

DIA - INTERIOR - CASA DE OLGA/HEITOR

Ouve-se a campainha da porta a tocar.
Olga, com cara de quem dormiu mal, abre a porta.
Quem está do outro lado é o Jorge que de imediato a abraça, os dois entram para a sala e sentam-se no sofá.

Jorge: Como é que o Heitor está?
Olga: Mal... quer dizer, eles ainda não sabem ao certo o que se passa, estão à espera dos resultados dos exames... mas ele está em coma... não sei o que fazer...
Jorge: O pessoal lá do escritório pediu-me para te dizer que eles estão contigo, eu só soube de tudo hoje de manhã...
Olga: Eu devia ter ido com ele... talvez as coisas tivessem sido diferentes.

Jorge abraça Olga.

Jorge: Não penses assim, estas coisas acontecem, tu não tens culpa de nada.

Olga limpa as lágrimas do rosto, Jorge fica a olhar fixamente para o chão.
Longa pausa.

Jorge (a olhar para o chão): Sabes...
Olga: O que foi... estás com uma cara tão esquisita... aconteceu alguma coisa?

Olga, com as mãos, vira o rosto do Jorge para a direcção dela.

Olga: Jorge, sabes que podes contar comigo... o que aconteceu... voltaste a jogar?

Jorge olha novamente para o chão.

Olga: Meu Deus, Jorge, tinhas prometido que ias deixar isso...

Jorge olha para a Olga.

Jorge: Eu sei, amor... mas não consegui parar... desta vez eles não me vão perdoar, deram-me uma semana para arranjar o dinheiro... se eu não pagar eles fazem-me a folha.
Olga: De quanto precisas?
Jorge (a olhar para o chão): 25 mil.
Olga (desiludida): Jorge...
Jorge: 25 mil esta semana, o resto vou ter de pagar...

Olga levanta-se rapidamente do sofá e vira as costas ao Jorge.

Olga: Eu não acredito nisto... como foste capaz de ser tão estúpido?

Jorge levanta-se e coloca as mãos nos ombros da Olga.

Jorge: Olga, querida... tenta entender, eu tinha um jogo quase perfeito nas mãos, aquilo ia ser a maior jogada da minha vida... eu, eu tive de arriscar, era tudo ou nada.

Ouve-se a campainha da porta.

Olga (enquanto vai abrir a porta): Pois... parece que foi o nada outra vez, não foi, Jorge? Quando é que vais crescer?

Jorge senta-se no sofá.
Olga abre a porta, do outro lado está o carteiro.

Carteiro: Bom dia, minha senhora, tenho aqui uma carta registada para um... senhor Heitor Ferraz.
Olga: Eu sou a esposa dele, pode-ma entregar.
Carteiro (enquanto entrega a carta): Assine aqui, por favor... obrigado e bom dia, minha senhora.

Olga fecha a porta, volta para a sala e fica em pé junto do sofá.
Ela abre e lê a carta.

Jorge (enquanto Olga lê a carta): Sabes, Olga, estive a pensar, vou vender o carro, é a única coisa com algum valor que tenho... sei lá, depois vejo como vou para o emprego, talvez comece a ir a pé... o emprego, ainda nem sei se lugar vai ser meu... eu sei que o carro não vai dar para pagar tudo mas é melhor que nada... querida, eu juro-te que se sair desta alhada com vida nunca mais pego num baralho de cartas, não quero acabar como o meu pai, tu sabes, ele está preso...

Olga senta-se no sofá.

Olga: Meu Deus!
Jorge: O que se passa? Eu já te tinha falado sobre o meu pai.
Olga: Não é isso.

Olga entrega a carta ao Jorge.
Jorge pega na carta e levanta-se, enquanto caminha à volta do sofá ele vai lendo algumas partes da carta em voz alta.

Jorge: Exmº. Sr. Heitor Ferraz, lamentámos ter de o informar do falecimento do Dr. Sebastião Ferraz... o funeral será realizado quarta-feira... por vontade expressa em testamento, o Dr. Sebastião Ferraz nomeou o Sr. Heitor Ferraz como seu legítimo herdeiro ... solicitámos a sua presença nos nossos escritórios o mais breve possível... o valor estimado que irá receber é de...

Jorge pára de andar, faz uma pausa e volta a ler a carta.

Jorge (pausadamente): Um milhão, cento e trinta e sete mil, quinhentos e vinte e quarto euros e onze...

Jorge senta-se desamparadamente no sofá.

Jorge: Cêntimos.

Pausa.

Jorge: Uau, isto é muito dinheiro!

Jorge volta a olhar para a carta.

Jorge: Quem é este tal Sebastião... o pai do Heitor?!

Olga com o olhar fixo no chão, não responde.

Jorge (toca no ombro da Olga): Olga.
Olga (estremecida): O quê... o que foi?!
Jorge: Este fulano da carta... é o pai do Heitor?
Olga: Não... os pais dele já morreram há algum tempo... pelo menos foi o que ele me disse... eu... eu estou muito confusa neste momento...
Jorge: Sabes o que esta carta significa? Significa que tu estás milionária... ou melhor, tu estás multi-milionária, tu...
Olga: Importas-te de te calar por um momento? Eu não estou nada, ok, Jorge? Quem herdou isso foi o Heitor, não eu.
Jorge: Sim, mas tu estás casada com ele...
Olga: Casada com separação de bens... sabes o que isso quer dizer? Eu não tenho direito a nada, só se o Heitor...
Jorge: Morresse?

Durante alguns instantes Olga e Jorge olham-se em silêncio.
Olga levanta-se do sofá, caminha até ao bar da sala e prepara uma bebida.
Jorge olha novamente para a carta, depois ele levanta-se e com a carta na mão aproxima-se da Olga.

Jorge: Este dinheiro...

Olga interrompe bruscamente.

Olga: Dinheiro... dinheiro... é só nisso que és capaz de pensar neste momento?! Então e eu, eu não conto para nada? Achas que tudo isto é fácil de suportar? Bolas, eu tenho o marido deitado numa cama de hospital neste momento e... e nem sei se ele vai sobreviver e tu só pensas e falas em dinheiro?
Jorge: O que é que tu queres? Claro que penso no dinheiro, a minha vida depende dele... e eu não estou aqui para te apoiar? Não fui eu que te dei a atenção e o carinho quando tu precisaste? Pensei que gostavas verdadeiramente de mim mas parece que me enganei... podes ficar com o dinheiro, eu arranjo-me sozinho...

Jorge atira a carta para cima do sofá e sai da rapidamente da casa.
Olga começa a chorar.
Instantes depois ouve-se a campainha da porta, Olga abre a porta, quem está do outro lado é o Jorge.

Jorge: Desculpa, amor... fui um estúpido... perdoa-me.

Olga e Jorge abraçam-se, depois, ainda abraçados, caminham até à sala e sentam-se no sofá.

Jorge: Tu tens razão, Olga, foste apanhada por tudo isto como se tivesses sido atropelada por um comboio, mas ouve, quero que saibas que eu vou estar sempre do teu lado para te ajudar a ultrapassar estes obstáculos, eu...

Ouve-se o telefone a tocar, Olga levanta-se do sofá e vai atender.

Olga (ao telefone): Sim, sou eu... claro... está bem, até logo.

Olga pousa o auscultador e vira-se para o Jorge.

Olga: Era do hospital, eles já têm os resultados dos exames do Heitor, pediram-me para ir lá.
Jorge: Queres que vá contigo?
Olga: Não... prefiro ir sozinha, obrigada.

Jorge levanta-se e abraça-a.

INTERIOR - HOSPITAL - GABINETE DA DRª ELISABETE

Olga bate à porta.

Doutora: Sim... pode entrar.

Olga entra no gabinete.

Doutora: Olá, D.Olga, sente-se, por favor.
Olga (enquanto se senta): Obrigado, mas trate-me só por Olga, devemos ter mais ou menos a mesma idade.
Doutora: Tem razão.
Olga: E então, Doutora Elisabete... como está o meu marido?
Doutora: Sinceramente nem nós conseguimos saber ao certo, o seu marido revela sintomas extraordinários... diria mesmo incompreensíveis para a actual ciência...
Olga: Sintomas extraordinários?!
Doutora: Extraordinários, realmente... o seu marido apesar de estar em coma parece conseguir ouvir...
Olga: Não estou a perceber... ele consegue ouvir? Como a Doutora pode ter a certeza disso se ele está em coma?
Doutora: Foi o próprio Heitor que confirmou isso...
Olga: Ele também consegue falar?
Doutora: Não... mas consegue mover a mão direita ao ponto de... conseguir escrever.
Olga: O quê?!

A Doutora abre uma gaveta da secretária, retira um papel e entrega-o à Olga.

Doutora: Tome, veja com os seus próprios olhos.

Olga pega na folha.

Olga: Meu Deus... isto é mesmo a letra do Heitor...e... e ele escreveu o meu nome e a morada da nossa rua... não sei o que dizer...
Doutora: O seu marido parece estar de alguma forma consciente, a preocupação em escrever a morada demonstra isso mesmo. Eu falei com um médico meu amigo que me disse já ter presenciado um caso semelhante mas...

Olga pousa a folha em cima da secretária.

Olga: Mas...?
Doutora: Posso falar abertamente consigo?
Olga: Por favor...
Doutora: Bem, esse médico chegou à conclusão que no caso que ele presenciou o paciente mantinha-se em contacto com a realidade através dos olhos das pessoas que ele conhecia... familiares, amigos, colegas de trabalho...tudo aquilo que eles viam ele via também.
Olga: Isso é assustador... o que aconteceu a esse paciente?

Pausa.

Doutora: Não sei ao certo mas... parece que ele se suicidou, um dia a enfermeira chegou ao quarto e encontrou o tubo da respiração artificial cortado.

O telemóvel da Olga toca, ela assusta-se com o toque.
Olga abre nervosamente a sua carteira e procura o telemóvel lá dentro, assim que o encontra ele deixa de tocar.

Olga (irritada): Merda.
Doutora: A Olga parece muito nervosa... o que é natural, não quer que eu mande vir um café ou outra coisa qualquer?
Olga (enquanto volta a por o telemóvel na carteira): Não.
Doutora: A sério, não é incómodo nenhum, eu...
Olga: Eu já disse que não quero tomar coisa nenhuma... será que posso ver o meu marido?
Doutora (levanta-se): Sim, claro... eu acompanho-a.
Olga (levanta-se rapidamente): Deixe-se estar, não é preciso, ele está no mesmo quarto?
Doutora: Sim, está mas...
Olga: Eu sei onde é... com licença.

Olga sai do gabinete.

Doutora (enquanto se senta): Coitada... passou-se.

INTERIOR - HOSPITAL - QUARTO ONDE ESTÁ INTERNADO HEITOR

Olga entra no quarto, aproxima-se da cama onde o Heitor está deitado e pega na mão direita dele.

Olga: Heitor... sou eu, a Olga... consegues ouvir-me?

Ela fica a olhar para a mão dele à espera de uma reacção.

Olga: É claro que não consegues, tu estás em coma, é impossível...

Subitamente, Olga sente que Heitor a está a apertar com a mão, ela assusta-se e larga a mão dele.

Olga: Meu Deus! Então é mesmo verdade... tu consegues ouvir.

A mão de Heitor abre-se ligeiramente como se estivesse a convidar a Olga para a segurar.
Olga aproxima-se mas receosamente não pega na mão dele.

Olga: Heitor... aconteceram tantas coisas e tão depressa que eu... eu nem sei o que é melhor... eu amo-te mas...

Uma Enfermeira entra no quarto.

Enfermeira: Desculpe mas a senhora vai ter de sair.

Olga olha uma vez mais para o Heitor e sai logo em seguida do quarto, a Enfermeira sai também.
A mão de Heitor fecha-se firmemente.

NOITE - INTERIOR – RESTAURANTE

Olga e Jorge estão a jantar.

Jorge: ... então ele consegue usar a mão para escrever?
Olga: Não é a mão que me preocupa... o que me preocupa foi aquilo que a tipa disse sobre o Heitor conseguir ver tudo o que se passa através dos meus olhos...
Jorge: Talvez ele só consiga ver e não ouça nada daquilo que estamos a dizer...
Olga: Não gozes.
Jorge: Eu não acredito em nada disso... são tretas de quem não tem competência para saber o que se passa realmente.... como eles são uns incompetentes atiram essas coisas ridículas para o ar.
Olga: Mas eu vi o que ele escreveu... e senti que ele me ouviu... isso é verdade.

Pausa.

Jorge: Dizes que o Heitor consegue escrever e ouvir... certo?

Olga abana afirmativamente com a cabeça.

Jorge: Isso dá-me uma ideia... que tal o Heitor assinar uma declaração em como te dá todos os poderes para usares os bens dele como muito bem entenderes... com a herança incluída, que tal?
Olga: Não... nem pensar numa coisa dessas... eu não seria capaz disso...

O telemóvel do Jorge toca, ele atende.

Jorge (ao telemóvel): Sim... sou eu... sim... eu sei... eu sei... foda-se, eu já disse que sei disso... podem dizer ao Sr. Castro que na data combinada ele vai receber a merda do dinheiro... obrigadinho por me lembrarem.

Jorge, irritado, atira o telemóvel para cima da mesa.

Olga: Está tudo bem?

Jorge baixa a cabeça, inclina-se sobre a mesa e segura a cabeça com as mãos.

Jorge: O que é que achas?! Eram os cobradores... eles não estão a brincar, se eu não arranjar a porcaria do dinheiro... eles...
Olga: Jorge... sobre aquilo da declaração...

Jorge ergue imediatamente o rosto.

Jorge: Conheço um tipo que trabalha no Notário... amanhã ou depois temos a declaração nas nossas mãos.

Jorge pega nas mãos da Olga.

Jorge: Obrigado, és um verdadeiro anjo.

QUARTA-FEIRA
DIA - INTERIOR - HOSPITAL - GABINETE DA DRª ELISABETE

Olga bate à porta.

Doutora (sentada na secretária): Sim... pode entrar.

Olga entra e vai cumprimentar a Doutora que lhe estende a mão.

Doutora: Olá, Olga... sente-se, por favor.
Olga (senta-se): Obrigado, Doutora. Bem, em primeiro lugar queria-lhe pedir desculpas.
Doutora: Ora essa, porquê?
Olga: Porque da última vez que cá estive não fui correcta com a Doutora.
Doutora: Não se preocupe com isso, a Olga está a passar um mau bocado.
Olga: De qualquer das formas queria pedir-lhe desculpa por ter sido tão bruta... a Doutora não tem culpa daquilo que está a acontecer.
Doutora: Vamos esquecer isso, combinado?
Olga: Obrigado... diga-me, em relação ao Heitor, tem novidades?
Doutora: Infelizmente não, ele continua no mesmo estado.

Olga dá um suspiro.

Doutora: Contudo, depois da Olga ter saído o Heitor voltou a escrever qualquer coisa.
Olga (intrigada): Ai sim, o quê?!

A Doutora retira de uma gaveta da secretária uma folha e entrega-a à Olga.
Olga olha para a folha e fica confusa.

Olga: Mas... o que é que está escrito aqui?! Não percebo nada, é a letra do Heitor mas...
Doutora: A sério que não percebe?
Olga: Isto está escrito em que língua... a Doutora consegue perceber?
Doutora (hesitante): Não... também não percebo... talvez nem seja nada, talvez sejam apenas letras juntas sem nenhum sentido.
Olga: É estranho... Doutora, queria pedir-lhe um favor.
Doutora: Sim... pode dizer.
Olga: Queria-lhe pedir para não voltar a dar nada ao Heitor onde ele possa escrever...
Doutora: Mas, Olga, essa é a única forma que ele tem de comunicar.
Olga: Eu sei mas peço-lhe esse favor, pelo menos por enquanto.
Doutora: Bem...
Olga: Por favor... eu tenho as minhas razões...
Doutora: Está bem, vou dar essas instruções à enfermeira.
Olga: Muito obrigada... agradeço-lhe imenso... só mais uma coisa... era possível eu ver o Heitor agora?
Doutora: Sim, claro... quer que a acompanhe?
Olga (enquanto se levanta): Não, muito obrigada... já lhe roubei muito tempo... até à próxima, se houver alguma alteração no estado do Heitor avise-me por favor.
Doutora (levanta-se e estende a mão à Olga): Pode ficar descansada.
Olga: Adeus.

Olga sai do gabinete, a Doutora fica a olhar intrigadamente para aquilo que o Heitor escreveu na folha de papel.

INTERIOR - HOSPITAL - QUARTO ONDE ESTÁ INTERNADO HEITOR

Olga entra no quarto, antes de fechar a porta ela certifica-se de que ninguém está no corredor.
Depois de fechar a porta, Olga olha durante alguns instantes para o corpo estático de Heitor.

Olga (a sussurrar): Vamos lá.

Ela aproxima-se da cama, inclina-se sobre o Heitor e fala-lhe suavemente ao ouvido.

Olga: Heitor... sou eu, a Olga... consegues ouvir-me?

Olga pega na mão dele e fica a aguardar uma reacção, ele não reage.

Olga (emocionada): Eu... eu não sei o que fazer... sinto-me tão fraca, insegura... abandonada... eu... quase preferia estar no teu lugar agora...

Heitor aperta firmemente a mão dela.
Olga sente um "arrepio na espinha" mas continua a falar.

Olga: Amor... porque é que isto aconteceu? Porquê? Parece que o Mundo desabou em cima de mim... são tantas coisas ao mesmo tempo... tantas coisas... agora é que eu reconheço o teu valor... eras tu que tratavas de tudo... meu Deus a falta que tu me estás a fazer...

Olga limpa as lágrimas.

Olga (a sorrir nervosamente): Até para pagar as contas eu preciso de ti, imagina... sou mesmo uma inútil, não é? A propósito, a tua médica disse-me que tu consegues escrever... se conseguisses, eu precisava que tu assinasses um cheque... estou a precisar de algum dinheiro para pagar as despesas e como a conta está no teu nome... espera um pouco.

Ela abre a sua carteira e tira de lá a Declaração e uma caneta.

Olga: Querido, toma a caneta... por favor, faz um esforço e assina o teu nome.

Olga coloca a Declaração debaixo da mão do Heitor.
Ela olha com expectativa para a mão dele.

Olga: Vá lá, querido... ajuda-me a ajudar-te.

Depois de alguns instantes a mão de Heitor move-se e escreve qualquer coisa.
Olga fica extremamente ansiosa e expectante.
A dado momento a mão de Heitor pára de escrever, a caneta cai no chão.
Olga ignora a caneta e rapidamente pega na Declaração.

Olga (quando vê o que Heitor escreveu): Meu Deus...

Na Declaração, Heitor escreveu: EU SEI DE TUDO.

Assustada e nervosa, Olga recua uns passos e sem querer derruba uns frascos de vidro.

Olga (a olhar para o Heitor): Não... isto não é possível...

A Doutora Elisabete entra bruscamente no quarto.

Doutora: O que aconteceu aqui? Eu ouvi o barulho de vidros partidos... Olga, você está bem?

Olga olha para a Doutora e sai rapidamente do quarto sem lhe dizer nada.
A Doutora olha para os vidros no chão, ela vê a caneta no chão perto da cama e apanha-a.

Doutora: O que será que aconteceu aqui?

A mão do Heitor toca intencionalmente na Doutora, ela vira-se para ele.

EXTERIOR – CARRO DA OLGA

Olga, enquanto conduz, pega no telemóvel e liga para o Jorge.

Olga (impaciente); Vamos, Jorge… atende… o que é que tu estás a fazer?

INTERIOR – CASA DO JORGE – SALA

O telemóvel do Jorge, em cima da mesa, deixa de tocar.
Jorge está em pé diante de Freitas e Cardoso (dois cobradores profissionais).
Freitas dá um valente soco na cara do Jorge fazendo com que ele caia sentado no sofá.
Freitas senta-se ao lado do Jorge, Cardoso “passeia” pela sala apreciando com atenção a decoração.

Freitas: Que tal, sr.Jorge… eu tinha ou não tinha razão? Uma pessoa sentada pensa muito melhor.

Jorge, assustado e a sangrar da boca, permanece em silêncio.

Freitas (virando-se para o Cardoso): Cardoso, porque não te sentas também?
Cardoso: Eh páh, Freitas… ainda teimas com essa treta?
Freitas: Cardoso, isto não é treta nenhuma, páh... está cientificamente provado que uma pessoa pensa melhor se estiver sentada.
Cardoso: Valha-me Deus.
Freitas (vira-se para o Jorge): Sr.Jorge, ouça… veja lá se eu não tenho razão… se uma pessoa estiver sentada o cérebro está mais propicio a chegar a conclusões acertadas do que se a pessoa estiver em pé… e porquê? Eu explico-lhe porquê… porque se estiver em pé uma parte do cérebro tem de estar ocupada com a coisa do equilíbrio e isso, parecendo que não, ocupa desnecessariamente uma boa parte de neurónios que deveriam estar a ser usados para outra coisa. Está a perceber o que eu quero dizer, sr.Jorge?
Cardoso: Teorias, Freitas… teorias… e olha, eu também tenho uma teoria que deita por terra a tua.
Freitas: Páh, Cardoso… queres partilhá-la com a malta?
Cardoso: Ok, ela envolve aqui o sr.Jorge… segundo a tua teoria uma pessoa sentada pensa melhor, pensa com mais clareza, chega a melhores conclusões, certo?
Freitas: Obviamente.
Cardoso: Pois… mas aqui o nosso amigo Jorge estava sentado na altura em que decidiu continuar a apostar quando ele deveria era ter parado… no caso dele, estar sentado apenas complicou mais a coisa…
Freitas: Alto lá… espera aí… mas ele muito provavelmente quando tomou a decisão de jogar estaria em pé, logo, estar sentado e continuar a apostar foi uma mera consequência da decisão que ele tomou quando ainda estava em pé.
Cardoso: De qualquer das formas foi uma má decisão, sr.Jorge… uma péssima decisão… o senhor está em maus lençóis, sabia?
Freitas: Ouça, Jorge… em consideração ao seu pai…
Cardoso: Um velho conhecido nosso.
Freitas: Nós vamos ser… como hei-de dizer? Cardoso…
Cardoso: Sei lá… tu é que estás sentado, o meu cérebro está ocupado a tentar equilibrar-me.
Freitas: Porra páh… bem, sr.Jorge, nós vamos ser benevolentes. Vamos dar-lhe uma semana extra para arranjar o dinheiro.
Cardoso: Repare, sr.Jorge, nós só fazemos isto a pessoas especiais… pessoas com quem nós até simpatizámos… mas não tenha qualquer dúvida de que se o senhor não arranjar o dinheiro nós…
Freitas (enquanto se levanta): Nós iremos fazer-lhe outra visita, só que dessa vez ela não será tão agradável como esta… deixe-se estar sentado, nós sabemos onde é a saída… Cardoso, vamos?
Cardoso: Sim… sim… vamos. Sr.Jorge, parabéns pela decoração da sala, apreciei muito a simbiose cosmopolita/minimalista, adeus.

Assim que Freitas e Cardoso saem, Jorge levanta-se, pega no telemóvel e liga para a Olga.

Olga (dentro do carro, ao telemóvel): Sim…
Jorge (ao telemóvel): Olga… precisámos falar.
Olga: Eu ainda há pouco tentei ligar-te para…
Jorge: Sim, eu sei… não pude atender… estava ocupado… onde estás agora?
Olga: Estou a chegar a casa…
Jorge: Posso ir até aí?
Olga: Claro… aconteceu alguma coisa?
Jorge: Depois falámos… até já.

INTERIOR – CASA DA OLGA

Ouve-se a campainha da porta, Olga abre a porta e vê o Jorge com os lábios inchados.


Olga: Meu Deus! O que te aconteceu?
Jorge: Fui agredido… posso entrar?
Olga: Entra… mas o que aconteceu?

Os dois vão até à sala e sentam-se no sofá.

Jorge: O que aconteceu? Bem, eu estava em casa a trabalhar quando ouvi a campainha da porta, fui abrir e levei logo um soco na barriga, assim, sem mais nem menos.
Olga: Poça… e quem era o tipo?
Jorge: Não era só um, eram quatro…eles trabalham para o gajo a quem eu devo o dinheiro…
Olga: Meu Deus.
Jorge: Eu ainda me tentei defender mas eles estavam em vantagem… os cabrões deram-me pontapés no corpo todo…
Olga: Bandidos.
Jorge: E tu… tiveste sorte… o Heitor assinou a Declaração?

Silêncio.

Jorge: Olga…

Sem dizer nada, Olga levanta-se e vai à carteira buscar a Declaração, depois de a entregar ao Jorge, Olga senta-se no sofá.

Jorge (ao ver o que o Heitor escreveu): O que significa isto?
Olga: Significa isso que aí está escrito.
Jorge: O quê?!
Olga: Ele sabe de tudo, sabe de nós, da herança… de tudo.
Jorge: Foda-se.

Silêncio.
Jorge fica durante alguns instantes a olhar para o que Heitor escreveu.

Jorge: Bem… eu não queria acreditar que isso fosse possível mas agora só há uma coisa a fazer.
Olga: Uma coisa a fazer… o que queres dizer com isso?
Jorge: Olga… ouve… se ele sabe dos nossos planos o que é que achas que ele vai fazer se um dia sair do estado em que está?
Olga: Não… não pensei nisso ainda.
Jorge: Pois eu já… em primeiro lugar ele vai querer o divórcio e em seguida vai à policia…
Olga: Divórcio?
Jorge: Temos de ser objectivos neste momento… e tu tens de tomar uma decisão… queres continuar a viver na angústia do Heitor um dia sair de coma e esperar pelo que ele vai fazer, ou…
Olga: Ou…
Jorge: Ou queres deixar que eu trate de tudo para que tu vivas uma vida livre e despreocupada?
Olga: Por acaso não estás a sugerir que…
Jorge: Eu não estou a sugerir nada… apenas estou a colocar as duas únicas hipóteses que tens neste momento… a decisão é tua.

Silêncio.

Jorge: Anda cá.

Jorge abraça a Olga e depois olha-a nos olhos.

Jorge: Querida, aceita uma coisa: a tua vida mudou. Eu acredito que tenhas gostado em tempos do Heitor e entendo que a decisão que tens de tomar não seja fácil mas quero que saibas de uma coisa… bolas, eu nunca disse isto antes a uma mulher… eu, eu amo-te… amo-te como nunca
julguei ser possível amar uma mulher e vou estar sempre mas mesmo sempre ao teu lado.

Eles abraçam-se.
Jorge volta a olhar nos olhos da Olga.

Jorge: Amor, queres mais tempo para pensar… reflectir sobre aquilo que queres fa…
Olga (interrompe-o): Não… não é necessário mais tempo… eu já tomei uma decisão.

Pausa.

Jorge: E então… o que decidiste?

Pausa.

Olga: Faz o que tens a fazer.

NOITE - INTERIOR - HOSPITAL - QUARTO ONDE ESTÁ INTERNADO HEITOR

A Enfermeira entra bruscamente no quarto.
A Doutora dá um pequeno grito de susto.

Enfermeira: Desculpe se a assustei mas pensei que a Doutora já tinha ido para casa.
Doutora: Eu vim só ver se estava tudo bem com este paciente...
Enfermeira (enquanto se aproxima da cama): Estranho... a Doutora mexeu no paciente?
Doutora: Eu?! Não... claro que não... porque pergunta isso?
Enfermeira: Devo estar a fazer confusão mas parece-me que ele estava deitado de outra forma.
Doutora: Olhe, porque não vai verificar se está tudo bem com o paciente do 33? Eu ainda vou ficar aqui mais um pouco... não se preocupe que eu depois apago a luz.
Enfermeira: A Doutora é que sabe, veja se também vai descansar, já é muito tarde... até amanhã.
Doutora: Até amanhã.

Quando a Enfermeira sai do quarto, a Doutora senta-se imediatamente numa cadeira junto da cama.

SEXTA-FEIRA
DIA – EXTERIOR – ESPLANADA PERTO DA PRAIA

Jorge, sentado sozinho numa mesa da esplanada bebe um sumo de ananás.
Freitas e Cardoso aproximam-se e sentam-se na mesma mesa.

Freitas: Sr.Jorge, como está? Escolheu um péssimo local para o nosso encontro, o meu colega não suporta muito bem o sol e o calor.
Cardoso: Realmente o Freitas tem razão, eu detesto o calor, por isso vamos ao que interessa. O que se passa? Qual a razão da sua insistência ontem à noite para a marcação deste encontro?
Freitas: Certamente o senhor ainda não conseguiu arranjar todo o dinheiro que deve.

Antes de Jorge ter tempo de falar, o Empregado da esplanada aproxima-se da mesa.

Empregado: Olá, os senhores vão tomar alguma coisa?
Freitas: Eu quero uma cerveja preta gelada.
Cardoso: Eu não quero nada… espere, traga-me um sumo de… o que é que o sr.Jorge está a beber?
Jorge: Um sumo de ananás.
Cardoso: Traga-me um sumo de laranja… num copo alto… com uma pedra de gelo… e uma palhinha… azul.
Empregado: Palhinhas azuis não sei se temos.
Cardoso: Páh, nesse caso traga uma palhinha qualquer, não sou esquisito.

O Empregado afasta-se.

Freitas: Sr.Jorge, pode começar.
Jorge: Muito bem, na verdade eu ainda não tenho o dinheiro… não tenho mas vou ter… esse e muito mais, eu…
Freitas: Amigo Jorge, eu e o Cardoso somos profissionais, sabe a quantidade de vezes que já ouvimos essa desculpa?
Cardoso: E também não se deu ao trabalho de nos chamar até aqui só para dizer isso, pois não? O que o senhor pretende realmente de nós?
Jorge: Vejo que os senhores são inteligentes… vou ser directo: tenho uma proposta a fazer-lhes.
Freitas: Uma proposta… que tipo de proposta?
Jorge: Uma proposta, digamos, de trabalho.

O Empregado da esplanada chega com as bebidas e pousa-as em cima da mesa.

Empregado: Afinal sempre temos palhinhas azuis, senhor.

Cardoso pega na palhinha azul e mete-a no bolso da camisa onde já estão muitas outras palhinhas de várias cores, o Empregado fica admirado.

Cardoso (olhando para o Empregado): Há algum problema?
Empregado: Não… não, nenhum… com licença.

O Empregado afasta-se.

Cardoso: Continue sr.Jorge, que proposta é que nos quer fazer?
Jorge: Os senhores sabem que estou metido num grande sarilho… eu… eu juro-vos que tentei lutar com todas as minhas forças contra as minhas fraquezas mas… bem, suponho que o velho ditado: quem sai aos seus não degenera, sempre seja verdadeiro. Não consigo explicar mas existe sempre algo, alguma coisa, que me atrai para o lado errado… até já gastei muito dinheiro em psicanálises mas nada deu resultado, eu…
Freitas: Desculpe interromper, mas não nos estará a confundir? Nós não somos propriamente padres, isso mais parece uma confissão.
Cardoso: Homem, diga de uma vez por todas o que quer de nós. O sol está a dar cabo de mim.
Jorge: Eu… eu quero mudar, mudar de vida.
Cardoso: Continuamos sem perceber.
Jorge: Um último golpe.
Freitas: Como?!
Jorge: O derradeiro golpe… aquele que me irá deixar definitivamente milionário… mas preciso da vossa ajuda para o conseguir. Prometo que serão muito bem recompensados…
Freitas: Você deve de estar a brincar… Jorge Magalhães, 25 anos de idade, o seu pai está preso, a sua mãe fugiu com os seus irmãos para a Madeira, você vive numa casa alugada, tem um carro em segunda mão, o modo como conseguiu as notas na Faculdade é no mínimo discutível, você está agora a estagiar numa empresa graças aos “favores” que faz a uma mulher casada… caro Jorge, quem é que você quer enganar? Você não tem nada.
Jorge: Tudo isso é verdade mas se eu vos disser que caso o meu plano resulte vou ficar com a capacidade para vos pagar quatro vezes mais do que aquilo que o Castro vos paga agora… será que assim estarão interessados em me ouvir?
Freitas: Bem… quatro vezes mais?
Cardoso (enquanto levanta o braço para chamar a atenção do Empregado): Empregado! Faça o favor de me trazer outro sumo, pode ser de ananás e … surpreenda-me, traga uma palhinha da cor que você quiser.

MADRUGADA – INTERIOR – HOSPITAL – QUARTO ONDE ESTÁ INTERNADO HEITOR

Freitas e Cardoso entram sorrateiramente no quarto.

Cardoso: Tens a certeza que é este quarto?
Freitas: Tenho páh, lembro-me perfeitamente que o Jorge disse que era o quarto 32.

Cardoso acende a luz do quarto, eles olham para o Heitor deitado na cama.

Cardoso: Coitado, tenho até pena do homem… tão novo.
Freitas: É… são coisas que acontecem.
Cardoso: A vida percorre caminhos muito misteriosos… repara: nós estamos aqui para por termo a uma vida que no fundo já não o é.
Freitas: Explica…
Cardoso: É páh, já não é uma vida no verdadeiro sentido da palavra, esta máquina é a única coisa que ainda o prende ao nosso mundo.
Freitas: Bom, é melhor não perder-mos mais tempo.
Cardoso: Tens razão… sabes como se desliga esta coisa? Isto tem algum ON/OFF?
Freitas: ON/OFF?! Pelo amor de Deus, páh… afasta-te, eu trato disso.

Freitas tira do bolso um canivete e aproxima a lâmina do tubo de respiração artificial ligado ao Heitor.
Subitamente entram no quarto três polícias comandados pelo Agente Dinis Coimbra (54 anos).
Os polícias apontam as armas na direcção do Freitas e Cardoso.

Agente Coimbra: Policia! Parem imediatamente, vocês os dois estão presos.

Freitas e Cardoso, de costas voltadas para os polícias, olham um para o outro.

Freitas: Parece que fomos apanhados, caro colega.
Agente Coimbra: Ponham os vossos braços atrás da cabeça e virem-se lentamente.
Cardoso (para o Freitas): Sentes-te com sorte?
Freitas: Olha à tua volta, o que é que achas?!
Agente Coimbra: Não façam nenhuma loucura, entreguem-se... vocês não têm hipótese. Ponham os braços atrás da cabeça e virem-se lentamente... é o último aviso.
Cardoso (começa a cantar):There's a lady who's sure all that glitters is gold...And she's buying a stairway to heaven.
Freitas (junta-se ao colega e também começa a cantar):When she gets there she knows, if the stores are all closed ...

Os polícias olham incrédulos.

Agente Um (para o Agente Coimbra): Coimbra, o que fazemos?
Cardoso e Freitas (cantam juntos):With a word she can get what she came for....Ooh, ooh, and she's buying a stairway to heaven.

Freitas faz um sinal com os olhos ao Cardoso e os dois viram-se rapidamente para os polícias.
Freitas atira o canivete contra um polícia atingindo-o num braço, Cardoso tenta pegar na sua arma, os polícias disparam, Freitas e Cardoso caem sem vida no chão do quarto.
O Agente Coimbra aproxima-se dos corpos de Freitas e Cardoso, baixa-se e verifica se eles estão mortos.
A Doutora entra no quarto, juntamente com mais duas enfermeiras, elas correm para junto dos dois corpos caídos no chão.

Agente Coimbra: Não vale a pena… tratem antes do meu colega que foi ferido.

As duas enfermeiras vão ter com o polícia ferido, uma delas vai mais tarde verificar o estado do Heitor.
O Agente Coimbra levanta-se e guarda a arma.

Agente Coimbra (para a Doutora): Afinal sempre era verdade… tinhas razão.
Doutora: Eu não, pai… o Heitor.

Os dois aproximam-se da cama onde o Heitor está deitado.

Agente Coimbra: Pobre rapaz, deve estar a passar por um inferno.
Doutora: Obrigado por teres acreditado em mim, pai.
Agente Coimbra: Continuo sem perceber como é que ele sabia que isto ia acontecer… mas enfim, o importante é que tudo acabou.

Pausa.

Agente Coimbra: Que cara é essa, filha…tu sabes de mais alguma coisa?!

Um Agente, com um telemóvel na mão, aproxima-se dos dois.

Agente (entrega o telemóvel ao Agente Coimbra): Desculpe mas o Chefe quer falar consigo.
Agente Coimbra (para a Doutora): A nossa conversa ainda não acabou, minha menina... falamos já.
Agente Coimbra (para o Agente): Como é que está o Pacheco?
Agente: Vai ter de levar uns pontos no braço mas não é nada de grave.
Agente Coimbra (ao telemóvel): Sim... Chefe... sim... fomos obrigados a abater os tipos... claro, está tudo registado em vídeo... não, só o Pacheco é que teve um ligeiro ferimento no braço... diga?!

Agente Coimbra, enquanto fala ao telemóvel, faz um sinal para a Doutora e afasta-se dela, o Agente acompanha-o.
A Doutora olha para o Heitor e pega-lhe na mão.

SÁBADO
DIA - INTERIOR - CASA DO JORGE

Alguém bate à porta, Jorge deixa o lanche que estava a preparar na cozinha e vai abrir a porta.
Do outro lado da porta estão Castro Holmes (36 anos) e mais dois tipos enormes.

Jorge (surpreendido): Dr.Castro?!
Castro: Olá, Jorge... queria falar consigo, posso entrar?
Jorge: Sim... claro... entre.
Castro (para os dois tipos enormes): Vocês os dois ficam aqui fora à minha espera.

Jorge e Castro vão para a sala, Castro olha para a decoração.

Castro: O Cardoso tinha razão...
Jorge: Perdão?!
Castro: O Cardoso, o tipo que trabalha para mim, lembra-se?
Jorge: S-sim, o que tem?
Castro: Ele tinha-me dito que o Jorge tinha uma sala muito bonita e vejo agora que ele tinha razão... posso-me sentar?
Jorge: Sim... claro.

Os dois sentam-se.

Castro: Pois é, o Cardoso é um tipo sofisticadíssimo, ele percebe muito de arte, aliás, sempre que eu quero saber alguma informação sobre arte vou ter com ele... o Jorge gosta de arte?
Jorge: Quem... eu? Sim... claro, gosto muito.
Castro (com um sorriso nos lábios): Aposto que o Jorge deve de estar a pensar no que eu estou aqui a fazer, acertei?
Jorge: Bem, eu...
Castro: Sabe, eu queria-lhe propor um negócio... mas antes disso será que me arranjava qualquer coisa para beber? Isto é, se não for um grande incómodo para o Jorge.
Jorge (enquanto se levanta): Não... quer dizer, sim... eu vou à cozinha buscar... tem alguma preferência?
Castro: Um Porto agora ia saber-me muito bem.
Jorge: Claro, eu vou buscar, com licença.

Jorge vai à cozinha.
Ele pega em dois copos e mete-os debaixo do braço, depois agarra no telemóvel e marca um número.

Jorge (ao telemóvel, fala baixo): Olga… ele está aqui… o Castro, o tipo a quem eu devo o dinheiro… em minha casa, estou com medo do que me possa acontecer, ele veio com mais dois tipos enormes… eu acho que…

Sem que Jorge se aperceba Castro entra na cozinha.

Castro: Precisa de ajuda?

Surpreendido, Jorge deixa cair os copos no chão.

Castro: Assustei-o? Desculpe, Jorge, foi sem querer.

Jorge pousa o telemóvel e baixa-se para apanhar os vidros do chão.

Castro: Jorge, diga-me onde tem a garrafa que eu sirvo.
Jorge (enquanto apanha os vidros, aponta para uma prateleira): A garrafa está ali.

Castro pega na garrafa e enche dois copos.

Castro (enquanto enche os copos): Sabe, Jorge, eu adoro beber um bom Porto, há qualquer coisa no aroma que me faz transportar para outra dimensão… fico até mais calmo.

Sem que Jorge perceba, Castro tira do bolso da camisa um comprimido e mete-o dentro do copo do Jorge.

Castro (oferece o copo ao Jorge): Cá está o seu copinho… agora, vamos para a sala?
Jorge: Sim… vamos.

Com os copos na mão, os dois vão para a sala.

Castro: Se me permite, Jorge, antes de nos sentarmos queria propor um brinde.
Jorge: Um brinde?!
Castro: Sim, um brinde a si, a partir de hoje o Jorge vai, espero, começar uma nova vida.
Jorge: Desculpe mas não estou a perceber.
Castro (a sorrir): Não fique assim nervoso, vamos fazer o brinde e logo eu explico-lhe tudo.

Depois de brindarem e beberem, os dois sentam-se.

Castro: Hum... magnifico néctar. Agora vamos lá falar de negócios...
Jorge: Dr.Castro, antes de mais nada eu quero que o senhor saiba que...
Castro: Não me trate por senhor, faz-me sentir tão mais velho, sou apenas alguns anos mais velho que o Jorge.
Jorge: Desculpe...
Castro: Eu sei que o Jorge se tem esforçado para arranjar o dinheiro que me deve, era isso que ia dizer, não era? Eu sei que sim, estou a par de tudo.
Jorge: Está?!
Castro: Claro, como é que pensa que um homem como eu chegou onde chegou? Talvez o Jorge não saiba mas também eu nasci no seio de uma família modesta, tal como o Jorge. Sei bem das dificuldades que a vida apresenta mas como dizia a minha avô, viver não custa o que custa é saber viver. Modestamente é isso que tenho feito ao longo da minha vida, saber viver.

Nervoso, Jorge bebe mais um pouco de vinho.

Castro: Contei-lhe isto porque me identifico de certa maneira com o Jorge e é por isso que lhe quero propor uma coisa.
Jorge: Diga, Dr.Castro.
Castro: Queria que o Jorge viesse trabalhar para mim.

Pausa.

Jorge bebe o resto do vinho.

Jorge: Trabalhar para si?!
Castro (a sorrir): Sim, trabalhar para mim, garanto-lhe que não se vai arrepender, eu pago muito bem… e até podíamos esquecer a divida, que tal?
Jorge: Com licença.

Jorge levanta-se e abre a janela.

Castro: Sente-se bem?
Jorge: Sim mas subitamente fiquei cheio de calor.
Castro (a sorrir): Deve ser da excitação. Sente-se lá e ouça o que eu tenho para dizer.

Jorge a cambalear e com o rosto vermelho, senta-se.

Castro: Como lhe dizia, surgiu inesperadamente uma vaga na minha organização, se o Jorge aceitar a minha proposta vai ter tudo aquilo com que sempre sonhou, dinheiro, carros, casas… mulheres.

Jorge limpa o suor do rosto.

Castro: O trabalho só tem um pequeno senão.
Jorge: Qual?
Castro: Não é para trabalhar aqui.
Jorge: É noutra cidade?
Castro (a sorrir): É um pouco mais longe que isso.

Jorge levanta-se.

Jorge: Desculpe, eu não me sinto bem, não sei o que se passa comigo, parece que o meu coração vai explodir… eu vou…

Jorge cai no chão, Castro levanta-se calmamente e vai ter com ele.

Castro: Então, o Jorge não quer saber onde vai trabalhar?
Jorge: Ajude-me… preciso de ajuda…
Castro: O Jorge vai trabalhar para mim no Inferno e já agora, se vir por lá o Cardoso e o Freitas diga-lhes que quando eu puder passo por lá.

Jorge fica a contorcer-se de dores no chão.
Castro calmamente vai à cozinha buscar a garrafa de vinho do Porto e pega nos copos que tocou.

Castro: Jorge, não leve a mal mas tenho de ir trabalhar, eu ficava aqui a conversar mais um pouco mas já estou atrasado…

Castro sai da casa a beber mais um pouco de vinho.

Pouco depois…

Olga bate à porta do apartamento do Jorge.

Olga: Jorge… sou eu, abre… Jorge, estás bem?!

Depois de algumas tentativas, Olga retira da carteira umas chaves e abre a porta.

Olga (vê o Jorge deitado no chão): Meu Deus… Jorge.

Ela corre para ele, Jorge começa a deitar espuma pela boca.
Olga, desesperada, pega no telemóvel.

Olga (ao telemóvel): É do hospital?! Depressa, preciso de uma ambulância com urgência…

INTERIOR – HOSPITAL – GABINETE DA DRª ELISABETE.

Olga está sentada, com os cotovelos em cima da secretária ela segura a cabeça com as duas mãos.
A Doutora entra com um copo na mão.

Doutora (entrega o copo à Olga): Tome, Olga, beba isto… vai ficar mais calma.

Olga bebe um pouco, a Doutora senta-se em frente dela.

Doutora: Mais uma vez lamento a morte do seu amigo, o nosso médico especialista em casos de envenenamento fez tudo que era possível mas aquilo que ele tomou era letal. A Olga faz alguma ideia do porquê do suicídio?
Olga (muito nervosa): Suicídio?! O que é que você está a dizer? Ele não se suicidou ele foi assassinado.
Doutora: Meu Deus… isso é terrível.
Olga: O Jorge devia muito dinheiro a uma pessoa e… Doutora, a minha dor de cabeça parece que cada vez está mais forte…
Doutora: É natural, beba tudo que está no copo e tente ficar o mais calma possível.

Olga bebe o resto que estava no copo.

Doutora: Esta semana deve ter sido um inferno para a Olga, primeiro o acidente com o seu marido agora a morte do seu amigo…

Subitamente Heitor entra no gabinete.
Surpreendidas, Olga e a Doutora levantam-se.

Olga e Doutora (ao mesmo tempo): Heitor!

Olga corre para o Heitor e abraça-o com força.

Olga (emocionada): Amor… tu estás bem… nem imaginas o que a minha vida tem sido sem ti… sabe tão bem abraçar-te outra vez…

Heitor olha para a Doutora.

Olga (segura o rosto do Heitor com as mãos): Deixa-me olhar bem para ti, amor.
Heitor (friamente olha para a Olga): Afasta-te.
Olga: O quê?!
Heitor: Afasta-te de mim, eu não te conheço.
Olga: Mas…
Heitor: Eu pensava que te conhecia mas enganei-me, não te conheço… afasta-te de mim, já disse.

Bruscamente Heitor afasta a Olga e vai ter com a Doutora.

Heitor (a sussurrar ao ouvido da Doutora): Elisabete, eu tinha-te dito que não ia resistir…
Doutora: Tomaste o comprimido que te dei? Ainda estás fraco.
Heitor: Tomei, não te preocupes.
Olga (emocionada): Mas o que é que se está a passar aqui… não estou a perceber nada…
Heitor (para a Olga): É melhor que te sentes.
Olga: Heitor…
Heitor (irritado): Senta-te.

Olga e a Doutora sentam-se, Heitor fica em pé.

Heitor: Que desilusão, Olga… nunca pensei que fosses capaz.

Olga debruça-se sobre a secretária e segura a cabeça com as duas mãos.

Olga: Eu… eu não me sinto bem… estou…
Heitor: A traição não te chegava, não é? Lembras-te do dia em que vieste aqui com uma declaração para eu assinar, lembras-te? Desde esse dia que eu recuperei os sentidos… a minha própria mulher…

Heitor começa a suar bastante.

Heitor: Durante estes dias fingi estar em coma, só assim eu a Elisabete conseguimos apanhar os tipos que tu mandaste para me matar…
Olga: O que é que estás a dizer? Eu não sei de nada, foi o Jorge que…
Heitor: Cala-te! Chega de mentiras. Graças a Deus, enquanto eu estava de coma sabia de tudo o que se passava… cheguei mesmo a escrever tudo num papel, recordas-te da folha que a Elisabete te mostrou?

Heitor olha para a Doutora, ela retira da gaveta uma folha.

Heitor ao caminhar para ir buscar a folha tropeça sozinho e quase cai.

Doutora: Estás bem?

Heitor pega na folha.

Heitor (mostra a folha à Olga): Vês, Olga? Está tudo aqui, tudo até ao dia em que enviaste aqueles dois para me matar… mas como está escrito em Latim não percebeste nada, eu sabia que tu não irias perceber…

Heitor pousa a folha em cima da secretária.

Olga: Doutora… eu, eu não me sinto bem… estou a perder a visão… ajude-me.
Heitor: Chega, Olga, chega de mentiras. Era dinheiro que querias? Nunca vais ter nada meu, nunca.

Heitor faz uma pausa, ele põe a mão no peito.

Heitor: Podes até matar-me que mesmo assim não levas nada, assinei ontem uma declaração em como se alguma coisa me acontecer a Elisabete fica com tudo o que é meu.

Olga levanta-se.

Olga (quase a desfalecer): Eu… eu não aguento mais...preciso de…

Olga cai desamparada no chão.
Heitor com o rosto coberto de suor olha para a Doutora, ela permanece calmamente sentada a olhar para o relógio que tem no pulso.

Heitor: Elisabete, o que se passa com a Olga?

Heitor baixa-se e olha para o rosto da Olga.

Heitor (a arfar): Elisabete, o rosto dela está azul… porque não fazes nada?
Doutora (a olhar para o relógio): Porque estou à espera.
Heitor (quase a desfalecer): Mas… à… espera… de quê?

Heitor perde os sentidos e cai ao lado da Olga.

Doutora: À espera disso.

Calmamente, a Doutora levanta-se e anda à volta dos dois corpos.

Doutora (sozinha, emocionada): Foi terrível, pai… os dois não suportaram a emoção do reencontro… os corações cederam… é triste, muito triste… os corações que fizeram com que eles se apaixonassem um pelo outro, foram também os responsáveis pelas mortes de ambos… trágico, sem dúvida. O quê, pai? Não… não há necessidade de envolver a polícia nisto, eu mesma vou fazer as autópsias… é o mínimo que posso fazer por eles.

Ela caminha até à secretária, senta-se, respira fundo e marca um número no telefone.

Doutora (ao telefone, aflita): Doutor… é a colega Elisabete… preciso que venha com urgência ao meu gabinete… aconteceu uma tragédia…

Ela levanta-se, caminha até juntos dos corpos e ajoelha-se.
Pouco depois, batem à porta do gabinete.

Doutora: Entre, Doutor.

Quem abre a porta é Castro Holmes, ele entra e fecha a porta.

Castro (surpreendido): Doutora… o que aconteceu?
Doutora: Uma fatalidade, Dr.Castro, uma fatalidade.

Castro caminha até junto dos corpos e ajoelha-se em frente à Doutora.

Doutora (emocionada): Eles… eles sofreram dois ataques de coração simultâneos… já tentei tudo, não sei o que fazer…

Castro olha para os corpos.

Castro: Estranho… os sintomas parecem demonstrar outra coisa, parece… parece que eles foram envenenados.
Doutora: O quê?! Está louco?
Castro: Doutora, seja sincera comigo… o que aconteceu realmente?
Doutora (a chorar): Eu… eu matei-os.

Longa pausa.
Eles ficam a olhar um para o outro em silêncio.
Subitamente os dois desatam às gargalhadas, levantam-se e beijam-se ardentemente.

FIM