14/11/05

ISTO É UM ASSALTO!

“ISTO É UM ASSALTO!” – gritou Nunes Martim virado para o empregado do Banco que, estranhamente, se começou a rir… como é que Nunes Martim, um homem de trinta e quatro anos e mais ou menos bem-parecido, se tornou num assaltante de Bancos e porque é que o empregado do Banco se riu?!
Para obter as respostas é necessário fazer um conveniente flashback… cá vai ele:

Nunes Martim nasceu e cresceu com uma ideia fixa na cabeça: tornar-se no maior e mais brilhante cómico que o País alguma vez viu… e ouviu.
O único, mas ao mesmo tempo, grande problema é que ninguém o levava a sério, e não ser levado a sério é provavelmente a pior coisa que se pode fazer a um cómico.
Grande parte da adolescência de Martim foi dedicada ao estudo, em pormenor, de actuações dos seus cómicos preferidos da altura, mais concretamente ele passava horas intermináveis colado ao ecrã da televisão a ver os noticiários.
Porém, todas aquelas horas de trabalho duro e árduo, passadas com o cu sentado no sofá, pareciam não ter servido para nada, uma vez que ninguém ligava absolutamente nada ao que Martim fazia ou dizia.
Tudo isto mudou quando Martim fez vinte anos, nesse dia alguém lhe deu a primeira grande oportunidade para que ele demonstra-se o seu real valor: Martim foi trabalhar para uma Fábrica de confecções (o “alguém” era o pai de Martim).
A experiência fabril revelou-se muito produtiva, não necessariamente para a Fábrica, Martim usou (e abusou) dos dois anos e meio em que lá “trabalhou” para efectuar alguns “estudos humanizados de comportamento alheio quando submetidos a situações potencialmente cómicas”… basicamente ele foi o palhaço de serviço.
Foi ainda durante a estadia naquela unidade fabril que Martim conheceu duas pessoas que viriam a ser essenciais no seu futuro: Tai-Pan – a namorada Sul-Coreana e Varetas – um tipo com mais de dois metros de altura que se tornou no seu melhor amigo.
Martim achava-se mais do que pronto para conquistar o País com o seu peculiar sentido de humor, nessa altura ele tinha quase vinte e três anos de idade e na sua cabeça a hora da consagração nacional tinha chegado, era por isso necessário seguir em frente, encarar o futuro olhos nos olhos e deixar a Fábrica para trás… a carta de despedimento que ele recebeu ajudou-o imenso nessa decisão.
Desempregado, sem dinheiro, com uma namorada muito bonita mas incapaz de pronunciar mais do que um limitado conjunto de palavras em português, com um novo melhor amigo capaz de pronunciar um gigantesco conjunto de palavras em português mas quase todas sem sentido, com uma carreira no “showbiz” em risco de terminar mesmo antes sequer de ter começado e com… uma enorme dor de cabeça, com tudo isto, Martim, fez aquilo que qualquer pessoa faria quando colocada em situação semelhante: foi pedir um aumento na mesada aos pais.
A “consulta familiar” foi um estrondoso sucesso em termos de entretenimento (os pais de Martim fartaram-se de rir), porém em termos financeiros foi uma nulidade.
A Martim só restava seguir um caminho: aquele que o levaria ao gabinete do Fundo de Desemprego local.
Acompanhado por Tai-Pan e Varetas, Martim entrou cabisbaixo no malfadado gabinete, no entanto foi exactamente aí, nesse improvável local, que a fulgurante escalada de Martim rumo ao sucesso teve o seu início.
A atmosfera dentro do edifício governamental era, como em todos os edifícios governamentais, uma atmosfera pesada, havia uma fila enorme de pessoas em pé, todas com ar de quem estava num funeral (no seu próprio funeral), elas aguardavam mais ou menos pacientemente a sua vez de serem atendidas pelas simpáticas funcionárias… correcção: havia apenas uma funcionária e a simpatia dela, a julgar pelo modo como atendia as pessoas, ter-se-ia perdido para sempre nos lacrados corredores do passado.
Para “animar” o povo, o Governo (ou algo semelhante) resolveu pendurar uma pequena televisão numa das paredes, na altura estava a ser transmitida, sem som, uma entrevista a um candidato a Presidente da República.
Martim, qual Comandante Supremo da maior super-potência mundial, examinou meticulosamente o cenário, era preciso agir, e agir depressa, o tédio estava a atacar com todas as armas possíveis e imaginárias.

Martim: Pessoal, temos de fazer alguma coisa… estas pessoas precisam da nossa ajuda senão ainda se transformam em estátuas… olhem para elas, parecem zombies a caminho da incineração.
Varetas: Ainda a semana passada vi um filme sobre zombies, aquilo metia mesmo medo… eles só eram destruídos com espuma…
Martim (pensativo): Espuma? Hum…
Tai-Pan: O que é um zombies?
Varetas: Zombies são pessoas mortas que pensam estar vivas.

Varetas apontou para a televisão, onde a entrevista muda ao político continuava.

Varetas: Vou-te dar um exemplo prático, Tai-Pan. Olha para a televisão… vês aquele homem engravatado e com ar de quem fez um pacto com o Diabo? Vês os olhos dele? Aquilo é um zombie.
Martim (entusiasmado): É isso!
Varetas: Ainda bem que concordas comigo, eu…
Martim: Vamos usar o extintor!
Varetas: Extintor?!
Tai-Pan: O que é um extintor?!
Varetas: Espera… tu não estás a pensar em usar um extintor, pois não?!
Martim: Claro que não! Estou a pensar em usar dois extintores.
Tai-Pan: Mas o que é um extintores?
Martim: Já vais perceber, Tai-Pan. O plano é o seguinte: eu vou ali para o meio e começo a contar uma piada sobre o Natal, quando eu disser a palavra “neve”, vocês os dois, com jeitinho, despejam um bocado dos extintores em cima de mim… o pessoal vai curtir bué a cena.
Tai-Pan: Um extintores… faz neve?!
Varetas: Achas mesmo que isso vai funcionar?
Martim: Não. Tenho a certeza. Agora, cuidado, vocês os dois têm de despejar os extintores com jeitinho.

“Despejar os extintores com jeitinho”, esta frase ecoou interminável e dolorosamente dentro da cabeça de Martim, à medida que ele e os amigos eram transportados num carro da polícia rumo à esquadra mais próxima.
Tudo aquilo que acontece na vida tem sempre dois lados: o bom e o mau, até mesmo os políticos têm um lado bom… tudo aquilo que acontece na vida, à excepção dos políticos, tem sempre dois lados: o bom e o mau.
O lado mau da “performance” de Martim é que ele foi multado pela polícia por “atentado contra o bom funcionamento da Função Pública”, o lado bom é que Martim, assim que saiu da esquadra, foi imediatamente abordado por uma equipa de repórteres televisivos.
O lado ainda melhor de tudo é que aquele não era um canal de televisão normal, não senhor, aquele era um canal diferente, único, excitante e inovador, um canal vocacionado apenas para a exploração fria e crua de escândalos, algo nunca visto até então.

Repórter: Como é que teve a brilhante ideia dos extintores?
Martim: Bem… para ser franco a ideia até nem foi minha, eu…
Repórter: É pena… você poderia ficar famoso por isso.
Martim: Famoso?! Claro que fui eu, Nunes Martim, quem teve a ideia… a brilhante ideia dos extintores… sabe, desde criança que o meu sonho é ser famoso, eu lembro-me que…
Repórter: Diga aos nossos telespectadores… você foi agredido pela polícia?
Martim: Não… só fui multado.
Repórter: É pena… isso iria torná-lo num herói.
Martim: Herói?! Bem… eu não queria dizer nada, mas a verdade é que… fui insultado.
Repórter: Só isso… só insultos?
Martim: Insultos… ao mesmo tempo que me davam estalos… na cara.
Repórter: Estalos?
Martim: Ao princípio, mas depois deram-me murros… fortes murros… e pontapés… no estômago. Nem sei como não fiquei com marcas no corpo… da agressão… brutal.
Repórter: Vai apresentar queixa contra os polícias?
Martim: Acho que não vale a pena, eles estavam só a fazer o trabalho deles.
Repórter: É pena… isso iria torná-lo num modelo a seguir pela juventude.
Martim: Vou até às últimas instâncias… Supremo Tribunal, se for preciso… lutarei para que ninguém passe por aquilo que eu passei lá dentro… foi mau de mais.

A entrevista, quando foi para o ar, teve tanta audiência que o Director-Geral daquele canal quis imediatamente marcar uma reunião com Martim.

Director-Geral: Parabéns! O amigo tornou-se numa verdadeira estrela, sabia? Nós recebemos muitas chamadas e e-mails de pessoas interessadas em saber mais coisas sobre si… diga-me, já pensou em fazer televisão?
Martim: Não, para ser franco, não. Nunca me interessei muito por electrónica.
Director-Geral: Realmente você tem piada, mas sabe, hoje em dia já não basta fazer rir, é preciso chocar as pessoas, acha que era capaz disso?
Martim: Acho que não, doutor, eu teria de ter um traseiro enorme para conseguir isso... para chocar, digo.
Director-Geral: Vejo que temos homem! Gosto muito de pessoas assim… como você.
Martim: Tem piada, sabia que a minha namorada diz-me o mesmo?

Depois da elucidativa reunião, Martim foi obviamente contratado e começou imediatamente a pensar num programa de televisão inovador para apresentar, algo tão brilhante e genialmente original que ele estava certo iria revolucionar o panorama televisivo mundial.
Algumas semanas depois, Martim apresentou o seguinte manuscrito ao Director-Geral:

“A minha ideia é…”

Como sempre, o Director-Geral achou que aquilo era mais uma piada e riu-se imenso, não compreendendo ele o drama da coisa.
Martim começou então, ao serviço daquele canal, a fazer entrevistas no exterior, Varetas - que entretanto se tinha despedido da Fábrica, acompanhou-o como camera.
As entrevistas começaram a ter um fenomenal sucesso, elas eram realmente… diferentes.
Como esta, feita a uma estrela de rock internacional:

Martim: Está a gostar de Portugal?
Rock-Star: Ah, sim… claro… é o meu país preferido neste continente.
Martim: Mas você é europeu, não prefere o seu próprio país?
Rock-Star: Portugal fica na Europa?!
Martim: Olha este… amigo, quem faz as perguntas difíceis aqui sou eu... adiante, conhece algum músico português?
Rock-Star: Claro que conheço!
Martim: Pode dar um ou dois exemplos desse raro conhecimento?
Rock-Star: O Figo e o Cristiano Ronaldo… eles são bestiais!
Martim: Mas esses são futebolistas… sabe o que é um músico?
Rock-Star: Ouça lá, vai passar a entrevista toda a contrariar-me?
Martim: Calma, homem… estou apenas a tentar ajudar…
Rock-Star: Deixe isso para os meus assessores.
Martim: É verdade que você foi à “Casa Rosette”, um conhecido bar de… enfim, divertimento sexual?
Rock-Star: …
Martim: Não diz nada?
Rock-Star: Só respondo a perguntas de música… da minha música.
Martim (sussurrar): Era isso que eu temia…
Rock-Star: Como?
Martim: Acha que alguém vai aparecer para o concerto logo à noite?
Rock-Star: Claro… o gigantesco estádio vai estar lotado, para sua informação.
Martim: Pobres diabos… e diga lá, você vai tocar o seu sucesso?
Rock-Star: Qual deles?
Martim (sussurrar): Bolas, ele tem mais do que um?!
Rock-Star: …
Martim: Você sabe realmente tocar algum instrumento?
Rock-Star: Está a ver aquele monte de instrumentos ali? São todos meus… todos!
Martim: Sim… mas você sabe tocar algum realmente?
Rock-Star: São todos meus, sabe o que isso significa? Que eu tenho dinheiro… muito dinheiro… ao contrário de você, que para ganhar a vidinha tem de entrevistar pessoas como eu.
Martim: Sabe que mais? Você tem razão, eu não deveria baixar tanto os meus padrões… Varetas, corta!

Foram entrevistas como esta que granjearam grande fama a Martim e grande proveito financeiro ao Director-Geral.
Martim, Tai-Pan e Varetas foram entretanto viver juntos para um apartamento de luxo.
A popularidade de Martim cresceu de tal forma que, onde quer que ele fosse, as pessoas já ficavam à espera que ele dissesse ou fizesse alguma coisa totalmente inesperada.
Certo dia, mais concretamente numa terça-feira… à tarde… onde o céu estava limpo e a temperatura rondava os 21 graus, nesse exacto dia… às 17 horas, Martim e Varetas entraram numa estação de serviço para atestar o carro.
Quando eles iam a pagar deram conta que as carteiras de ambos haviam sido roubadas, Martim virou-se para o funcionário e disse: “Amigo… não vamos pagar, roubaram as nossas carteiras.”, o funcionário, profundo conhecedor da fama de Martim, riu-se e enquanto piscava um olho a Martim perguntou-lhe quando é que aquilo ia passar na televisão, “Em breve… em breve”, respondeu Martim enquanto se afastava rapidamente daquele local.
Ainda incrédulo com aquela situação, Martim entrou no carro, sentou-se e elaborou ali mesmo uma teoria que para sempre iria modificar o rumo da sua vida: “Se eu tenho de pagar qualquer coisa mas digo que não tenho dinheiro para pagar e mesmo assim as pessoas deixam-me ir embora sem pagar… isso significa que se eu for a um Banco e disser que quero todo o dinheiro que estiver no cofre as pessoas vão dar-mo… e a sorrir.”.
A teoria pareceu bastante credível a Varetas, assim os dois entraram no Banco mais próximo para tirar a prova dos nove.
Martim entrou à frente, Varetas com a câmara de filmar desligada ao ombro entrou logo atrás... resultou!
Todas as pessoas que estavam no Banco acharam imensa graça ao “assalto”, até os seguranças, sempre tão simpáticos, quiseram colaborar levando o dinheiro até ao carro.
Martim planeou assaltar mais alguns Bancos e depois, quando já tivessem bastante dinheiro, ele, Varetas e Tai-Pan iriam fazer uma viagem… uma longa viagem, sem bilhete de volta… e os planos teriam efectivamente dado certo, caso Varetas e Tai-Pan não tivessem fugido com o dinheiro todo.
Nunes Martim jurou-me que tudo isto é verdade, que aconteceu realmente… mas é claro, nunca se pode confiar totalmente no pessoal da Ala B… mas mesmo que não seja verdade, a ideia do canal de televisão feito só com escândalos não me pareceu uma má ideia… não senhor… quem sabe, quando eu sair daqui… quem sabe…

12 de Dezembro de 1979
Hospício Central dos Bem-Aventurados – Ala A
José E. Moniz

FIM

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