29/03/05

Diário (Secreto) De Um Bebé

Querido Diário, tou exausto, ontem aconteceu um verdadeiro pandemónio cá em casa, tudo porque eu pronunciei as minhas primeiras palavras.
A minha mãe tem a certeza que eu disse "mãe", o meu pai jura que foi "pai"... vai ser difícil viver com estes dois, eu disse "dah".
O simples facto de eu ter dito qualquer coisa foi o suficiente para eles terem dado uma grande festa, se eles soubessem que eu sei escrever acho que ficavam loucos de vez.
Na festa conheci alguns parentes meus, gostei principalmente de um que deve ter a minha idade uma vez que também é careca e desdentado, o meu pai diz que ele é um "avô"... seja lá o que isso for.

Ultimamente, Amigo Diário, tenho observado atentamente o comportamento dos meus pais e sinceramente ando preocupado.
Sinto no meu interior que eles já não gostam um do outro, por exemplo: é raro vê-los em atitudes de demonstração de carinho e amor, como mudar as fraldas um ao outro.
É duro de admitir mas tenho o pressentimento que cada um muda a sua própria fralda, escrevo "pressentimento" porque nunca vi realmente esse presumível triste espectáculo.
No outro dia vi o meu pai a entrar para dentro de uma sala (a mesma onde sou castigado sem aparente razão e onde os meus pais me tiram a roupa toda e metem-me dentro de uma coisa molhada que me deixa com a pele toda enrugada), e fechar-se lá dentro, cheguei à conclusão que o meu pai muda lá dentro as suas fraldas... a minha mãe faz o mesmo.
Enfim...pais!... só dão preocupações, espero que mudem mas tou realmente preocupado.

Tou mais descansado, ontem à noite vi finalmente o meu pai a mudar as fraldas à minha mãe, isso significa que eles ainda gostam um do outro… só estranhei o facto de a minha mãe nessa altura ter começado a gemer, presumo que deve ter sido por causa do meu pai que se pôs em cima dela… já deixei de tentar entender aqueles dois.
Querido Diário, ser bebé não é nada fácil, ando até meio deprimido, de que adianta ser um bebé com opinião sobre os mais diversos itens se quando abro a boca tudo que sai é um patético: “dahhh”?
Construí uma teoria em que os adultos passam a vida a dizer disparates para se vingarem do tempo em que eram bebés e só diziam:”dahhh”… mas eu vou ser diferente, foda-se, se vou!

Nem sei como encontrei forças para escrever hoje, tou todo pisadinho.
Pergunto a mim mesmo se todos os pais do Mundo são tão loucos como os meus, agora eles cismaram que eu tenho de andar apenas equilibrado com as duas pernas de trás, mas eu sou algum animal de circo que para ganhar a vida tem de fazer habilidades??!
O pior, Querido Diário, o pior de tudo é que os meus pais têm um genuíno prazer em verem-me cair desamparadamente no frio e duro chão da sala, o meu pai põe-se num lado e a minha mãe no outro depois obrigam-me a andar, naquela terrível maneira, de um lado para o outro, sempre que eu caio (e eu caio sempre!), eles riem-se às gargalhadas.
No meio de todo este drama dou graças a Deus pelas fraldas, sem elas o meu rabiosque já estaria desfeito... mas eu vingo-me, ó se me vingo!
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Querido Diário, o meu maquiavélico plano de vingança corre às mil maravilhas, ou seja, tenho os meus pais sob total e completo controle… quem diria que dormir lhes iria fazer tanta falta?
O plano é o seguinte: eu espero pacientemente até à altura em que os meus pais se vão deitar, assim que pressinto o peso do corpo deles a cair na cama, nesse preciso instante, desato a berrar como se não houvesse amanhã, eles vêm ao meu quarto a correr para ver o que se passa e eu finjo imediatamente que estou a dormir, mal eles retornam para a cama repito a dose, é engraçado.
É claro que eu no dia seguinte durmo a tarde toda mas os pobres dos meus pais não porque têm de ir trabalhar… mais uma semana disto e eles estarão a comer na minha mão.
PS: desgraçadamente já fui domesticado e ando agora apenas em duas pernas.
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Ultimamente, Querido Diário, à noite, dou por mim deitado a contemplar as estrelas pintadas no tecto do meu quarto, nessas alturas sinto-me perdido, quase abandonado, instala-se dentro de mim um "je ne sais pas quoi" que me leva a reflectir vagarosamente pelas memórias mais significativas da minha ainda curta existência, subitamente o sabor da chupeta deixa de ser doce, tal como o beijo da minha adorada mãe, e passa a ser amargo, amargo como o futuro que atribuo a mim mesmo... qual o verdadeiro significado da vida? Estarei eu condenado a viver encarcerado para todo o sempre neste berço que me impede de obter a minha desejada liberdade, a minha autonomia? Enfim... acho que tenho de deixar de ver o Telejornal antes de me deitar, aquilo deixa-me deprimido.
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Caríssimo Diário, na difícil escada que é a vida comecei a subir um degrau que, segundo me quer parecer, vou ter de subir e descer muitas vezes: o degrau do amor... sim, estou apaixonado!
Ela é tudo aquilo que um bebé sempre sonhou ter.
O único "defeito" que encontro nela é, inversamente, a "razão" pela qual o meu pai insiste em trazer as suas namoradas às escondidas cá para casa, ou seja, ela tem 20 anos.
Bem sei que ainda sou muito novo para casar... que diabo, eu ainda nem sequer fiz a primeira comunhão, mas não consigo controlar o que sinto por ela, nem eu nem todos os outros meninos lá do infantário, a nova educadora de infância é realmente maravilhosa.
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Companheiro Diário, lamentavelmente o meu romance com a educadora de infância terminou mesmo antes de ter começado, fui ultrapassado na corrida pelo coração dela por um miúdo da sala ao lado da minha, ele é 7 meses mais velho que eu, conclusão: a experiência de vida conta muito nisto do amor.
O meu pai bem que me avisou que as mulheres preferem homens mais velhos, acho que isso deve ser algum trauma feminino relacionado com a figura paternal... mas isso sou eu a pensar, posso estar errado, sou apenas uma criança.
Pelo menos e depois deste episódio da minha vida já sei o que quero ser quando for grande: lutador professional de luta-livre... o Joãozinho vai-mas pagar!

PS: os meus pais agora já não fazem uma festa sempre que eu digo qualquer coisa, pelo contrário, tenho a leve sensação que eles gostavam que eu voltasse a deixar de falar... enfim, a eterna insatisfação humana.
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Querido Diário, já sei andar equilibrado apenas com as duas pernas, quando abro a boca só saem disparates, já tive uma crise existencial e um desgosto amoroso, sonho com uma profissão impossível, vivo às custas dos meus pais, enfim... acho que este diário já não faz sentido porque já sou oficialmente um “adulto”.
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FIM