Dentro de um autocarro quase vazio ELA está sentada sozinha a ler um livro.
O autocarro pára.
ELE entra rapidamente para o interior do autocarro, passa por ela e vai sentar-se num dos últimos bancos.
O autocarro arranca.
Passados alguns instantes ele levanta-se e caminha até perto dela.
- Desculpe, posso-me sentar ao seu lado?
Ela olha rapidamente para ele, depois volta a olhar para o livro.
- O lugar está vazio…
- Obrigado.
Ele senta-se.
- Desculpe incomodar novamente… eu sei que isto pode parecer estranho…
Ela pára de ler e vira-se para ele.
- Diga lá o que quer.
- Bom… eu… bem, espero que não se ofenda mas fiz uma aposta com o meu amigo que está sentado lá atrás…
- Sim… e o que é que eu tenho haver com isso?
- Tem haver porque a menina faz parte dessa aposta.
- O quê?!
- Sabe, eu apostei em como conseguiria que a menina me desse um beijo…
- Você deve de estar a gozar com minha cara, não é? Com licença.
Ela vira-se bruscamente para a frente e recomeça a ler.
- Espere, não se ofenda… eu normalmente até sou muito tímido…
- Nota-se.
- Já vi que isto vai ser difícil.
- Impossível… impossível é a palavra exacta.
- Bolas, será que nunca fez nada fora do normal? Acredite que isto para mim também não é nada fácil… eu não faço isto todos os dias, e…
Ela fecha bruscamente o livro e vira-se para ele.
- Ouça lá, você sente-se bem, precisa de ajuda médica?
- Deve ser isso, devo estar doente e a menina é o remédio que me pode curar.
- Se isso foi um piropo foi o mais estranho que ouvi até hoje.
Ela volta-se para a frente e procura a página que estava a ler.
- Posso saber o que está a ler?
- Um livro.
- Definitivamente a menina não quer colaborar… saiba que prefiro perder a aposta a continuar a ser maltratado por si.
Ele levanta-se.
- Coitadinho… não está à espera que eu acredite nisso, está?
Ele senta-se.
- Nisso o quê?
Ela fecha o livro e vira-se para ele.
- Que ficou realmente ofendido comigo… você estava à espera do quê, já viu bem a figurinha que está a fazer?
- Eu apenas queria um beijo.
- E acha pouco?
- Vá lá, a sério que não quer colaborar comigo?
Ela volta-se para a frente e abre novamente o livro.
- Vou pensar no seu caso.
- Com carinho?
- Você disse que era tímido, foi?
- E sou, mas estar ao pé de si deixa-me assim…
- Parvo?
- Tirou-me as palavras da boca.
- Não foi essa a minha intenção.
- Não quer voltar a pôr as palavras dentro da minha boca com a sua?
- Bom, é melhor parar por aqui, ok?
- Mas aqui não existe nenhuma paragem para o autocarro parar.
- Que engraçadinho.
Ele toca-lhe no braço.
- Importa-se de parar de ler? Tenho uma coisa muito importante para lhe dizer.
Ela fecha o livro e olha intrigada para ele.
- Vou ser sincero consigo, na verdade não existe amigo nem aposta nenhuma, fiz tudo isto por que…
O autocarro pára, todos os outros passageiros saem, eles ficam sozinhos.
O autocarro arranca.
- Continue…
- Bem, é difícil explicar por que é que fiz isto, talvez não exista nenhuma razão lógica para isso, apenas sei que senti uma força que me atraiu até perto de si, acredite que nunca fiz isto antes… esqueça, acho que você não compreende o que quero dizer, você deve de ser…
- Devo ser o quê?
- Nada.
- Agora vai acabar, devo ser o quê?
- Deve ser do tipo de pessoa muito certinha, incapaz de fazer uma coisa fora da rotina.
- Isso é um desafio?
- Entenda como quiser.
Ela olha fixamente para ele.
- Talvez eu não queira entender...
- Porque não?
- Porque não acredito... não acredito que seja possível este tipo de aproximação gratuita, sem qualquer intenção.
- Mas aconteceu...
- Já deixei de acreditar.
Ela desviou o olhar e pousou-o na capa do livro, perturbada com o momento de fraqueza. Ele tocou-lhe novamente no braço.
- De acreditar...? Em quê?
- Quer mesmo que lhe diga?
- Claro!
- Deixei de acreditar em aproximações à primeira vista, em amores, se lhe quiser chamar assim... por isso é melhor deixar-me sossegada de uma vez... – ela ficou a olhar para ele.
- Mas eu posso acreditar pelos dois! Só quero um beijo em troca...
- Realmente consegue ser um tímido muito original... – disse ela esboçando um sorriso.
Ele sorriu.
– E então... dá-me um beijo?
- Acha que o vou fazer?
- Bem... eu gostaria...
- Valha-me a Santa Abóbora... é insistente não é?
- É a minha melhor qualidade...
- E já vi que gosta de desafios...
Ele voltou a sorrir em resposta.
- Já lhe disse que não consigo explicar o porquê, não tem lógica.
- Já deu para notar que não tem mesmo lógica... é de loucos mesmo...
Ela olhou por momentos pela janela, pesando as palavras que ia dizer.
- Proponho-lhe um desafio...
- Eu desafiei-a primeiro.
- Eu sei, mas desafio-o a mostrar-me o valor deste impulso.
- Como é isso?
- Daqui a dois dias encontramo-nos no café junto à última paragem deste autocarro. Depois de almoço. Se resolver aparecer, conversamos melhor. Aceita?
Ele ficou pensativo por momentos.
- Se aceitar dá-me um beijo?
- Mas que insistência... Aceite o desafio e daqui a dois dias veremos.
Uma paragem brusca do autocarro e a voz do motorista a avisar da última paragem, trouxe-os de volta à realidade. Saíram.
- Então? – perguntou ela.
- Até daqui a dois dias, no café. – disse ele com um sorriso – Mas vai ser duro ter de esperar tanto tempo por si.
- Talvez... Até daqui a dois dias... – respondeu ela enquanto se afastava apressadamente.
Ele ficou a olhar. De repente sente um toque no braço. Era o motorista do autocarro.
- Sim?
- A sua amiga esqueceu-se do livro.
- Como?
- O livro. Estavam tão ocupados a conversar que a menina se esqueceu do livro. Até tem os dados dela e tudo, pode ser perigoso ficar por aí.
- Ah! Obrigado.
- De nada. E boa sorte! – respondeu o homem com uma piscadela de olho.
FIM
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